Fisco não pode negar restituição de indébito reconhecida judicialmente

Publicado em: 04 jun 2018

Por *Maurício Cezar Araújo Fortes

Não nos parece ser preciso muito esforço argumentativo para concluirmos que os contribuintes têm o direito de receber de volta tudo aquilo que indevidamente pagaram a título de tributo. Para tanto, o contribuinte geralmente tem o direito de optar por um ou uma combinação dos seguintes métodos: restituição e compensação.

A restituição, prevista no artigo 165 do Código Tributário Nacional, CTN, é um direito amplo; a compensação, por sua vez, depende de lei autorizadora, lei esta que pode estabelecer garantias e condições para a sua efetivação (CTN, artigo 170). Assim, vê-se que a restituição é um direito mais amplo e de menor possibilidade de restrição por meio do poder público.

Por vezes a situação que caracteriza o indébito tributário é plenamente aferível na seara administrativa. Outras vezes, Fisco e contribuintes discordam sobre a existência de indébito, especialmente quando o contribuinte questiona a legalidade ou constitucionalidade dos atos normativos que autorizam a cobrança tributária. Nestes casos, o contribuinte deverá buscar o judiciário, para que este declare o indébito tributário e determine: a) a liquidação e pagamento do indébito, o que será feito por meio da sistemática de precatórios ou RPV prevista no artigo 100 da Constituição Federal ou; b) declare o direito de o contribuinte compensar o tributo indevido ou solicitar a sua restituição administrativa.

O modo por meio do qual será solicitada a repetição do indébito depende da avaliação quanto à possibilidade de compensação dos tributos: a compensação é geralmente escolhida pelos contribuintes por comportar menor imprevisibilidade quanto à disponibilidade de recursos por parte dos entes públicos para quitar seus débitos. Em outros casos, no entanto, a compensação é impossível de ser feita, o que pode ocorrer, por exemplo, quando o contribuinte deixe de apresentar débitos futuros de tributos em relação ao ente demandado.

No âmbito federal, a IN 900/2008 previa a possibilidade de o contribuinte de tributos federais efetuar a restituição administrativa de tributos cujo indébito tivesse sido decretado judicialmente. No entanto, desde a edição da IN 1.300/2012, cujas disposições neste sentido são hoje repetidas pela IN 1.717/2017, tal possibilidade deixou de existir. Trata-se de aplicação de entendimento da RFB consolidado na Solução de Consulta no 382 – Cosit.

Segundo este entendimento, o artigo 100 da Constituição Federal, ao estatuir que os pagamentos devidos pela Fazenda Pública em virtude de sentença judiciária deverão ser feitos exclusivamente na ordem cronológica de apresentação de precatórios, proibiria a restituição administrativa de tributos:

Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

Trata-se de interpretação que não tem razão de ser.

Primeiro porque nem mesmo literalmente este é o sentido que deve ser dado ao artigo: a interpretação correta do dispositivo é que, nas execuções judiciais contra a fazenda pública, os pagamentos devem ser efetuados exclusivamente na ordem de apresentação de precatórios. Há diferença entre sentença que determine o pagamento de um valor pelo Estado ao contribuinte e outra que reconheça que não há norma jurídica apta a constituir relação jurídico-tributária entre Fisco e contribuinte. Não se afirma que os pagamentos decorrentes de decisão judicial devem ser feitos exclusivamente por meio de precatório, mas na ordem exclusiva em que são apresentados.

No mais, é preciso lembrar que a compensação tributária é uma maneira de receber antecipadamente o indébito tributário: o contribuinte que realiza compensação recebe, sem se submeter à fila de precatórios, um crédito. O procedimento perante a RFB é de “habilitação de crédito”, ao invés de pedido de pagamento. A diferença é que este crédito só poderá ser utilizado para pagar tributos. Do ponto de vista da receita, no entanto, ocorre uma perda do mesmo jeito: não há um desembolso, mas deixa-se de receber valores.

Ainda: estariam o contribuinte que consegue compensar um tributo indevidamente pago e aquele que não tem esta possibilidade em situações cuja diferença seria apta, do ponto de vista da isonomia, a lhes determinar tratamento distinto? Nos dois casos o contribuinte teria o indébito reconhecido judicialmente. Ocorre que o primeiro poderia compensar, pois continua gerando débitos do tributo. O segundo, que, por exemplo, obteve sentença declarando não ser o mesmo contribuinte de um tributo, deve entrar na fila de precatórios quando foi compelido a pagar quantias a título de tributo? Parece-nos que não.

Não bastasse ser absurdo o resultado da interpretação dada ao artigo 100, o regramento que trata do processo de consulta proíbe que a ele se pudesse chegar: o artigo 26-A do Decreto 70.235/1972, que regula as consultas sobre a aplicação da legislação tributária federal, determina que os órgão da RFB são proibidos de afastar ou deixar de observar lei sob o fundamento de inconstitucionalidade.

E, ao negar a possibilidade de repetição administrativa de indébito declarado judicialmente, a RFB deixa de observar diversas leis que regulam a compensação e restituição no âmbito administrativo federal, com destaque para o artigo 74 da Lei 9.430/96, que prevê expressamente a possibilidade de restituição administrativa de indébito declarado judicialmente:

Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão.

Ora, se os únicos créditos passíveis de serem restituídos fossem aqueles apurados administrativamente, a ressalva de que o artigo seria aplicável aos créditos judiciais com trânsito em julgado, perderia a razão de ser. Assim como perderia o sentido o § 2º do arrigo 66 da Lei 8.383/91, que prevê, também expressamente, a possibilidade de o contribuinte optar pela restituição quando autorizado a compensar tributos indevidamente pagos:

Art. 66. Nos casos de pagamento indevido ou a maior de tributos, contribuições federais, inclusive previdenciárias, e receitas patrimoniais, mesmo quando resultante de reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória, o contribuinte poderá efetuar a compensação desse valor no recolhimento de importância correspondente a período subseqüente.

§ 1º A compensação só poderá ser efetuada entre tributos, contribuições e receitas da mesma espécie.

§ 2º É facultado ao contribuinte optar pelo pedido de restituição.

E o STJ concorda com o que se afirma acima: já há muito consolidou-se o entendimento de que o ordenamento jurídico pátrio chancela a possibilidade de os contribuintes solicitarem administrativamente a restituição de indébitos declarados judicialmente. Neste sentido:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. IMPOSTO SOBRE PRODUTO INDUSTRIALIZADO – IPI. RESTITUIÇÃO ADMINISTRATIVA DE INDÉBITO RECONHECIDO EM SENTENÇA DECLARATÓRIA. POSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 461 DO STJ. VIOLAÇÃO À COISA JULGADA E NECESSIDADE DE EMISSÃO DE NOTAS FISCAIS DISTINTAS PARA O INDUSTRIAL E O PRESTADOR DO SERVIÇO DE INSTALAÇÃO. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM . FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO IMPUGNADO. SÚMULA Nº 283 DO STF. REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA Nº 7 DO STJ. VIOLAÇÃO AO ART. 166 DO CTN. NÃO OCORRÊNCIA. SEGURANÇA CONCEDIDA PARA IMPULSIONAR O PROCESSO ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE.

1. Ausência de ofensa ao art. 535 do CPC, tendo em vista que o acórdão recorrido decidiu a lide de forma clara e fundamentada na medida exata para o deslinde da controvérsia, abordando os pontos essenciais à solução do caso concreto. Houve, inclusive,expressa manifestação quanto ao art. 100 da Constituição Federal e à possibilidade de execução na via administrativa do direito reconhecido em sentença transitada em julgado.

2. O entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça, inclusive já sumulado (Súmula nº 461 do STJ), é no sentido de que “o contribuinte pode optar por receber, por meio de precatório ou por compensação, o indébito tributário certificado por sentença declaratória transitada em julgado “. Com efeito, a legislação de regência possibilita a restituição administrativa de valores pagos a maior a título de tributos, conforme se verifica dos art. 66 da Lei nº 8.383/1991 e 74 da Lei nº 9.430/1996.

[…]. 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.

(RESP 1.516.961/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques)[1]

Não bastassem o equívoco interpretativo e a burla às regras impostas para a própria interpretação de normas vigentes, a decisão de obstar a restituição administrativa representa uma escolha administrativa equivocada por parte da RFB. Ao invés de submeter a restituição a um procedimento interno da própria receita, precedido do preenchimento de formulários pelos próprios contribuintes, formulários estes passíveis de serem auditados eletronicamente e com eventuais recursos sujeitos a uma discussão técnica dentro de seus próprios órgãos, a receita prefere que os contribuintes apelem ao já excessivamente atarefado judiciário, com o consequente pagamento de honorários e despesas com peritos, para efetivação de um procedimento que possivelmente será conferido pela própria RFB – mas agora com maior gasto de tempo para preenchimento de dados e relatórios – e cujos eventuais recursos serão processados por órgão externos.

Assim, também sob este prisma, a negativa de restituição administrativa de indébitos declarados judicialmente não nos parece ser a melhor escolha para um Fisco que se pretenda eficiente. Para além de questões referentes à justiça, transparência, respeito à legalidade e à moralidade, negar tal direito aos contribuintes é simplesmente um enorme desperdício de tempo, dinheiro e recursos humanos.

[1] No mesmo sentido, REsp 1.642.350/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Hermann Benjamin.

*Maurício Cezar Araújo Fortes é procurador do estado do Piauí e advogado. Mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo, é coordenador do Instituo Brasileiro de Estudos Tributários em Teresina e ex-agente fiscal de rendas da Secretaria de Fazenda de São Paulo, onde foi juiz do Tribunal de Impostos e Taxas.

 

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