Campo Grande (MS) – A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), pautou, para o plenário virtual, ação sobre a tributação de softwares no Brasil. A questão chegou a ser pautada outras três vezes para as sessões presenciais, mas foi retirada. Nos outros momentos, entrou na agenda juntamente com outros processos que também abordam o tema.
O setor, preocupado com o momento que vive o país, fez um movimento para que o caso fosse adiado — ainda sem resposta. O receio é de que a ação crie um precedente no sentido de que é válida a tributação de ICMS. Por outro lado, os estados entendem que a demora para julgar provoca insegurança jurídica e que uma eventual correção de rumo pode ser dada nas outras ações.
Essa ação direta de inconstitucionalidade é a mais antiga relacionada à matéria na Corte. Ela foi proposta em 1999, período em que softwares eram divididos em duas categorias: por encomenda, ou seja, personalizado, ou de prateleira, quando alguém comprava o Windows, por exemplo, em uma loja por um disquete ou um CD.
Para as empresas de tecnologia, o ideal seria que os casos fossem julgados em conjunto. Para além disso, se apenas um tivesse de ser julgado em separado, este não seria o escolhido, justamente por ser o mais antigo e o tema ter mudado e incorporado novos elementos.
As empresas esperam que o STF estabeleça que a circulação de software, por qualquer tipo de transferência de dados digitais, não pode ser tributada pelo imposto estadual, que tem alíquotas de até 18%, mas apenas pelo ISS, cuja alíquota vai até 5%. Os ministros deverão discutir se um software é uma mercadoria ou um serviço.
A ADI 1.945 foi proposta pelo então PMDB, hoje MDB, para contestar um dispositivo da Lei 7.098, de 1998, do estado do Mato Grosso. Em 2017, outros três processos foram ajuizados. Dois deles são da Confederação Nacional de Serviços (CNS) e questionam normas mais atuais sobre o assunto, de Minas Gerais e de São Paulo.
Também tramita uma ação da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom) para questionar o Convênio nº 106, de 2017, do Conselho Nacional da Fazenda Nacional (Confaz). A norma autorizou os estados a cobrar ICMS nas operações com bens e mercadorias digitais, comercializadas por transferência eletrônica (ADI 5958).
Advogados de entidades que integram o processo como amici curiae chegaram a se reunir com a relatora para pedir o adiamento, mas ela foi categórica: o caso é antigo e precisa ser pacificado. De acordo com Saul Tourinho Leal, do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, em qualquer que seja a hipótese, software é sempre um serviço e, por consequência, o tributo devido é o ISS. “A jurisprudência jamais tributou software como uma mercadoria.”
“Nós entendemos que esse precedente não deve ser firmado a partir unicamente da realidade apresentada pela ADI 1.945, ajuizada em 1999, principalmente na modalidade virtual em lista. Formalizamos o pedido de adiamento e esperamos que haja um destaque desse caso, para que um precedente dessa magnitude, a natureza do software no Brasil, não seja firmado dessa forma. É um caso delicado demais, ainda mais neste momento de pandemia em que os softwares estão sendo mais importantes que nunca”, afirmou o advogado.
Representando a CNS, o advogado Ricardo Godoi comunga da preocupação. “O plenário virtual, desse jeito que foi desenhado no contexto da pandemia, não dá a possibilidade de expor o contraditório propriamente dito, ainda que gravemos uma sustentação e enviemos. Não há o confronto saudável entre o advogado e os ministros. É tudo muito frio, distante”, diz o advogado.
“Estamos receosos de que a discussão rasa sobre o tema, que faz a distinção da inicial desta ADI — software de prateleira e de encomenda —, acabe pautando o voto da relatora e o julgamento. Antes, a jurisprudência dava conta de que como o de prateleira é generalizado, é mercadoria, então incide ICMS. No por encomenda, é serviço”, explica Godoi. No fim, a discussão é sobre licenciamento de software, que, segundo as empresas, não envolve transferência de propriedade e, portanto, não envolve uma mercadoria, um bem corpóreo, não podendo ser considerado para fins de ICMS.
Há, além disso, segundo defendem os advogados, outra questão. De acordo com os defensores, a Lei Complementar 116, que estipula a lista de serviços para cobrança de ISS, fala sobre desenvolvimento e licenciamento de software, e com base nisso, os municípios cobram ISS sobre software. “Já para incidir o ICMS, independentemente do que eu acho, se é mercadoria ou não, se circula ou não, há a necessidade de previsão em lei complementar federal, que não existe. Por isso mesmo, há essa questão formal, há uma invasão de competência em se dizer da previsão do ICMS”, aponta Godoi.
Eles também apontam a possibilidade da bitributação: por mais que o STF decida que é correto incidir o ICMS, a lei do ISS segue existindo. O presidente da Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES), Rodolfo Fücher, defende que o ideal seria que, neste momento, a Corte aguardasse que o Congresso concluísse a discussão sobre a reforma tributária. Ele afirma que não faz sentido que o setor fique no meio de uma guerra fiscal entre estados e municípios.
“O julgamento desse tema neste momento é totalmente prejudicial, separado ou não das outras ações. A ADI está há quase duas décadas no STF. O Legislativo iniciou uma discussão séria sobre reforma tributária e que teoricamente resolveria todo esse impasse. E ainda estamos em momento de séria crise global que está afetando todos e tudo. Imagine uma decisão que venha a alterar toda a parte tributária do segmento de software. Isso vai causar um dano, um estrago no setor, sem precedentes. Já iria causar sem a pandemia, agora ainda mais”, enfatiza Fücher.
De acordo com ele, o Brasil, apesar da imensa oportunidade de negócios que existe, já que é o 5° maior mercado de internautas do mundo, afasta investidores internacionais pela dinâmica tributária complexa e confusa. Segundo dados do Ibope, o país tem 149 milhões de internautas ativos, ficando atrás da China, Índia, EUA e Indonésia. “O país precisa estar mais bem estruturado para quando a pandemia passar a gente ter investimentos sem risco, principalmente na área de tecnologia, essencial nesse momento de transformação de comportamentos, com aplicativos para videoconferências, soluções de nuvens para trocar informações, dados de sua empresas, e-commerce, o que deve ser pacificado pela reforma tributária”, conclui.
Mas é também em nome da segurança jurídica que os estados defendem a solução rápida do conflito que se dá no Judiciário. Para o procurador do Distrito Federal Jorge Galvão, que representa o Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do DF (Conpeg) na causa, caso o STF estabeleça que a tributação de software pelo ICMS é válida, automaticamente os municípios não estão mais autorizados a cobrar ISS.
“A tributação por ISS é feita no município do estabelecimento da empresa, o que faz com que a arrecadação se concentre em alguns poucos municípios que conseguem atrair essas empresas, por localização, como São Paulo, ou por tributação mais baixa, o que causa uma guerra fiscal entre eles, e o que prejudica municípios do Norte, Centro Oeste e gera desigualdade entre as regiões”, aponta Galvão.
Para o procurador, como a tributação do ICMS se dá por local de consumo, ela é mais justa. Além disso, 25% do ICMS é destinado a municípios consumidores. “Dessa forma, a maioria dos municípios sai ganhando. A maioria não tem empresa instalada no seu território. O ICMS é recolhido sobre o consumo e distribuído em parte aos municípios, então, do ponto de vista da justiça distributiva, o ICMS faz muito mais sentido”, pontua.
O procurador também contrapõe o argumento de que software não é mercadoria. De acordo com Galvão, a analogia feita pelas empresas é falaciosa. Ele faz uma comparação com um medicamento: ao comprar um remédio, uma pessoa não compra a patente, não pode comercializá-lo. “Quem desenvolve o software tem direito de explorar esse software, o direito autoral. Quando você baixa um aplicativo, você tem a licença de uso. O simples fato de mudar o nome de compra e venda para licenciamento não significa que não haja um bem a ser transferido”, argumenta. “É uma transferência de bens móveis. E ainda que não seja corpóreo, tem utilidade, ainda que não tenha materialidade, você passa a usar uma ferramenta para o seu bem estar. O direito tributário não se apega ao nome que você dá, mas à relação posta”.