Campo Grande (MS) – O senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) vem alegando que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) quebrou seu sigilo bancário ilegalmente ao repassar dados de suas operações financeiras ao Ministério Público fluminense. O procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro, Eduardo Gussem, afirma que não houve ilicitude na transferência. Contudo, os tribunais superiores não têm um posicionamento definitivo sobre o assunto. O entendimento predominante é que o Coaf pode encaminhar informações, mas só as que não estejam protegidas pelo sigilo.
Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro, reclama de um procedimento de investigação criminal (PIC) aberto pelo MP do Rio contra um de seus ex-assessores na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Fabrício Queiroz. Os promotores consideram suspeitas movimentações financeiras de R$ 7 milhões de Queiroz em três anos. Ele acumulava salários da Alerj e da Polícia Militar, e recebia cerca de R$ 23 mil por mês. Os dados foram enviados ao MP pelo Coaf.
A Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998) estabelece que o Coaf tem a função de monitorar todas as transações bancárias do país. Quando concluir que houve crime nessas movimentações, o órgão pode pedir que o MP, a polícia ou outras entidades instaurem investigações.
A Lei Complementar 105/2001, em seu artigo 6º, determinou que as autoridades fiscais podem ter acesso direto a dados de instituições financeiras quando eles forem indispensáveis para as apurações e houver processo administrativo em curso. E essas informações devem ser mantidas em sigilo. Além disso, a norma fixou que, quando o Banco Central ou a Comissão de Valores Mobiliários verificarem indícios ou a prática de crime, terão que informar o MP e entregar os documentos que baseiam suas conclusões.
Em entrevista à ConJur em 2013, o então procurador-geral do Banco Central, Isaac Sidney Menezes Ferreira, afirmou que a entidade deve preservar o sigilo dos dados obtidos de instituições financeiras. “Mas há exceções, dentre as quais a determinação legal prevista na própria LC 105 e outros diplomas legais extravagantes que obrigam o BC a comunicar indícios de crimes ao MP, ao Coaf e à Receita Federal, com os documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos”, disse Ferreira na ocasião.
Na mesma época, o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio opinou que esse repasse de dados viola o sigilo bancário. “Eu não concebo que dados bancários de um cidadão sejam acessados por um órgão do Ministério da Fazenda que os repassa a outros órgãos administrativos. Como fica a reserva do Judiciário e a garantia de que a suspensão do sigilo só se implementa com ordem judicial?”, questionou em entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura. A medida também foi criticada por advogados.
Sem violação
Em fevereiro de 2016, o Plenário do Supremo declarou a constitucionalidade do artigo 6º da LC 105/2001, que permite aos órgãos da administração tributária acessar dados bancários de contribuintes sem autorização judicial. Nove dos 11 ministros concluíram que a norma não configura quebra de sigilo bancário, mas sim transferência de informações entre bancos e o Fisco, ambos protegidos contra o acesso de terceiros.
Segundo o STF, como bancos e Fisco têm o dever de preservar o sigilo dos dados, não há ofensa à Constituição Federal. Na decisão também foi destacado que estados e municípios devem regulamentar, assim como fez a União no Decreto 3.724/2001, a necessidade de haver processo administrativo para obter as informações bancárias dos contribuintes.
Os contribuintes também deverão ser notificados previamente sobre a abertura do processo e ter amplo acesso aos autos, inclusive com possibilidade de obter cópia das peças. Além disso, os entes federativos deverão adotar sistemas certificados de segurança e registro de acesso do agente público para evitar a manipulação indevida das informações e desvio de finalidade.
Ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio e Celso de Mello. O primeiro destacou em seu voto que “no Brasil pressupõe-se que todos sejam salafrários, até que se prove o contrário”. “A quebra de sigilo não pode ser manipulada de forma arbitrária pelo poder público”, reclamou.
Marco Aurélio criticou os colegas pela virada na jurisprudência, já que, em 2010, seguindo voto dele, o tribunal entendeu ser inconstitucional a quebra de sigilo pelo Fisco sem autorização judicial. O ministro reputou o novo resultado à nova composição do Plenário, “talvez colocando-se em segundo plano o princípio da impessoalidade”.
Isso porque, como ele observou, “ante o mesmo texto constitucional”, mudou-se diametralmente de entendimento. “Embora não pareça, a nossa Constituição Federal é um documento rígido a gerar essa adjetivação, a supremacia. É ela que está no ápice da pirâmide das normas jurídicas.”
Em seu voto, Marco Aurélio fez referência ao inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “é inviolável o sigilo de dados”. A única exceção para a violação desse dispositivo é se houver ordem judicial, mas “uma exceção que não é tão exceção assim”, segundo o ministro.
“A regra é a privacidade”, continuou o vice-decano. Quem detém a prerrogativa de quebrar o sigilo bancário é o Judiciário, explicou o ministro, e que mesmo assim é limitada pela Constituição. “A se reconhecer essa prerrogativa ilimitada da Receita, ter-se-ia uma atuação política para garantir a arrecadação.”
“Vulnera a privacidade do cidadão, irmã gêmea da dignidade, concluir que é possível ter-se a quebra do sigilo de dado bancários de forma linear mediante comunicações automáticas, como ocorre segundo instrução da Receita.”
Já Celso de Mello declarou que, com essa decisão e a que permitiu a execução da pena após condenação em segunda instância, também de fevereiro de 2016, o STF deu uma guinada “conservadora e regressista” à sua jurisprudência e interrompeu a tendência de assegurar liberdades fundamentais aos brasileiros.
Transferência validada
No fim de 2017, a 1ª Turma do Supremo, por maioria, negou agravo que buscava anular investigação do MP baseada em informações bancárias obtidas diretamente do Coaf. O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, disse que a solicitação de dados para apurações é compatível com as atribuições constitucionais do Ministério Público. Como a Lei de Lavagem de Dinheiro determina que o Coaf deve avisar o MP da existência de crimes, “seria contraditório” impedir esta entidade de requerer informações ao conselho, avaliou Moraes.
O relator ressaltou que as instâncias inferiores verificaram que os dados compartilhados não eram protegidos pelo sigilo bancário. Como a Súmula 279 proíbe o STF de reexaminar provas, Moraes votou por negar o recurso. Ele foi seguido pelos ministros Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber.
Ao divergir, Marco Aurélio voltou a ressaltar a necessidade de aval judicial para o compartilhamento de dados bancários. “Entendo que há reserva do Judiciário e que esse convênio é insubsistente, já que desnuda os dados do cidadão”. O ministro referiu-se à Recomendação 4/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, que estabelece diretrizes para o uso de dados do Coaf.
Jurisprudência do STJ
O Superior Tribunal de Justiça foi mais a fundo na discussão. Em novembro de 2016, a 6ª Turma entendeu que, como as informações prestadas ao Coaf ficam à disposição de interessados, a Polícia Federal pode usá-las em investigações sem que isso caracterize quebra de sigilo. Dessa forma, o órgão não precisa pedir autorização judicial para usar tais dados.
A decisão foi na contramão do que o colegiado havia decidido na operação faktor, que apurou suspeitas de lavagem de dinheiro e crimes contra a ordem tributária no Maranhão. Na ocasião, em 2011, a 6ª Turma entendeu que o único fator que motivou a quebra de sigilo dos investigados foi um relatório de movimentações atípicas fornecido pelo Coaf. Para os ministros, seriam necessárias outras diligências e mais provas para justificar a quebra de sigilo, e não apenas o relatório do Coaf. Assim, a operação foi considerada ilegal desde o início.
Em seguida, a mesma seção concluiu que a quebra de sigilo bancário e fiscal fundada em relatório do Coaf não é ilegal. Isso porque as informações do órgão são confiáveis e justificam a medida.
Porém, no mês seguinte o ministro Rogerio Schietti Cruz avaliou que, embora o Fisco possa acessar diretamente dados de contribuintes, ele não pode usar tais informações para basear inquérito ou ação penal sem autorização judicial. Isso porque a Receita não tem autorização para compartilhar esses elementos com terceiros. O magistrado concedeu a ordem em Habeas Corpus para desentranhar de uma ação penal todos os dados de um contribuinte que foram usados pelo Fisco sem ordem da Justiça.
A 5ª Turma do STJ decidiu, em 2017, que o Coaf pode informar o Ministério Público sobre movimentações suspeitas de dinheiro sem autorização judicial – este é o caso que terminou validado pela 1ª Turma do STF. Mas não pode divulgar o conteúdo de seus relatórios, já que eles contêm informações protegidas por sigilo.
A seção seguiu o voto do relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Segundo ele, as informações detalhadas inscritas nos relatórios de informações financeiras do Coaf são protegidas por sigilo fiscal e bancário. Mas a mera informação sobre a existência de atividades suspeitas, não.
De acordo com o ministro, a mera informação de movimentações suspeitas não é suficiente para acusar ninguém de nada. Tanto é, explicou, que ela pode servir de base para pedir a quebra de sigilo bancário e fiscal ao Judiciário.