Por Adilson Abreu Dallari
Campo Grande (MS) – Pré-candidatos podem, sim, fazer propaganda eleitoral, pois a legislação em vigor apenas faz de conta que proíbe, mas, ao contrário, acaba por permitir e legitimar a atividade daqueles que, antigamente, eram designados como postulantes à candidatura. É o que se passa a demonstrar.
Em coluna anteriormente publicada sobre a necessidade de uma verdadeira Assembleia Nacional Constituinte independente e exclusiva, salientamos que a Carta de 1988 é fruto de um Congresso Constituinte, integrado por deputados e senadores que legislaram para si mesmos. Isso fica escandalosamente evidente nos dispositivos que disciplinam o sistema político eleitoral e partidário. O que já era muito ruim foi piorando ao longo do tempo, com emendas sempre destinadas a favorecer os já detentores de mandatos e “donos” de partidos políticos; praticamente inviabilizando qualquer sensível renovação dos quadros políticos.
A legislação que disciplina a matéria foi sendo remendada ao longo do tempo, conforme os interesses daqueles mesmos políticos nas eleições que viriam a ser realizadas em futuro próximo. Nas vésperas de cada eleição, novas alterações. Neste exame, será sempre considerada a redação atual de cada norma citada.
O Código Eleitoral em vigor foi estabelecido pela Lei 4.737, de 15/7/1965, a qual teve que ser modificada para ajustar-se à Constituição de 1988 e a alguns avanços tecnológicos, especialmente quanto à organização da Justiça Eleitoral e das votações e apurações. Para os efeitos deste estudo, basta a referência a dois de seus artigos. O artigo 87 dispõe que “somente podem concorrer às eleições candidatos registrados por partidos”, mostrando que ninguém pode ser considerado candidato senão após o registro da candidatura. Nessa mesma linha, o artigo 240 estipula que “a propaganda dos candidatos só é permitida após o dia 15 de agosto do ano da eleição”, estabelecendo limites para a propaganda eleitoral e penalidades para as transgressões.
Na vigência da atual Constituição, foi editada a Lei 9.096, de 19/9/1995, a chamada Lei dos Partidos Políticos, que, como não poderia deixar de ser, está maculada pelos defeitos da disciplina constitucional dessa matéria. Assim é que, no artigo 6º, ao cuidar do registro dos partidos políticos, ela permite a gritante aberração que é a existência de várias dezenas de agremiações partidárias, algumas delas claramente identificadas como legendas de aluguel. A parte mais substancial dessa lei é a que trata de questões financeiras, especialmente os artigos 31 e 38, que estabelecem e disciplinam, respectivamente, o Fundo Especial de Financiamento de Campanhas e o Fundo Partidário, instrumentos poderosos para a manutenção das coisas como estão.
O foco deste estudo está na Lei 9.504, de 30/9/1997, que “estabelece normas para as eleições”, as quais sempre são amoldadas a cada próxima futura eleição. Essa lei, em diversos, artigos, disciplina o uso de recursos de campanha, destacando, sempre, a responsabilidade dos partidos e dos candidatos. Porém, o que merece muito especial atenção é a inovação introduzida nessa lei pela Lei 13.165, de 29/7/2015, cuja ementa é a seguinte: “Altera as Leis nºs 9.504, de 30 de setembro de 1997, 9.096, de 19 de setembro de 1995, e 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral, para reduzir os custos das campanhas eleitorais, simplificar a administração dos Partidos Políticos e incentivar a participação feminina”. Ao lado desses elevados propósitos, entretanto, foi introduzido o que se convencionou chamar de jabuti.
Foi acrescentado ao texto da lei um artigo, 36-A, que legitima a atuação e isenta de responsabilidades os chamados pré-candidatos, os quais podem fazer propaganda eleitoral à vontade, com uma única proibição: não podem, explicitamente, pedir votos. Fica muito claro que, implicitamente, podem pedir votos, desde que não mencionem a palavra tabu “voto”. O estratagema utilizado para isso foi a prescrição de uma proibição vaga e genérica, seguida de uma longa e detalhada especificação de condutas que não configuram violação daquilo que é proibido.
Não há melhor forma para demonstrar isso que a transcrição desse artigo.
“Art. 36-A. Não configuram propaganda eleitoral antecipada, desde que não envolvam pedido explícito de voto, a menção à pretensa candidatura, a exaltação das qualidades pessoais dos pré-candidatos e os seguintes atos, que poderão ter cobertura dos meios de comunicação social, inclusive via internet: I – a participação de filiados a partidos políticos ou de pré-candidatos em entrevistas, programas, encontros ou debates no rádio, na televisão e na internet, inclusive com a exposição de plataformas e projetos políticos, observado pelas emissoras de rádio e de televisão o dever de conferir tratamento isonômico; II – a realização de encontros, seminários ou congressos, em ambiente fechado e a expensas dos partidos políticos, para tratar da organização dos processos eleitorais, discussão de políticas públicas, planos de governo ou alianças partidárias visando às eleições, podendo tais atividades ser divulgadas pelos instrumentos de comunicação intrapartidária; III – a realização de prévias partidárias e a respectiva distribuição de material informativo, a divulgação dos nomes dos filiados que participarão da disputa e a realização de debates entre os pré-candidatos; IV – a divulgação de atos de parlamentares e debates legislativos, desde que não se faça pedido de votos; V – a divulgação de posicionamento pessoal sobre questões políticas, inclusive nas redes sociais; VI – a realização, a expensas de partido político, de reuniões de iniciativa da sociedade civil, de veículo ou meio de comunicação ou do próprio partido, em qualquer localidade, para divulgar ideias, objetivos e propostas partidárias. VII – campanha de arrecadação prévia de recursos na modalidade prevista no inciso IV do §4º do art. 23 desta Lei”.
Este último inciso é mais recente, pois foi introduzido pela Lei 13.488, de 6/10/2017, promulgada no último dia em que seriam permitidas alterações das normas para as eleições de 2018.
Para deixar mais claro o vale tudo, o parágrafo 2º desse artigo afirma que “são permitidos o pedido de apoio político e a divulgação da pré-candidatura, das ações políticas desenvolvidas e das que se pretende desenvolver”. Salta os olhos que esse jabuti foi introduzido para dar cobertura a uma situação de fato. Os antigos “postulantes à candidatura“ já estavam desenvolvendo propaganda eleitoral, motivo pelo qual passaram a ser designados como “pré-candidatos”, figurando esse “pré” como um salvo-conduto perante a legislação então vigente.
Uma vez feito o furo na barragem, é impossível evitar o seu desmoronamento. Quem tiver alguma dúvida veja o vídeo “O Brasil feliz de novo”, no qual o ex-presidente Lula, apenas com o cuidado de não usar o vocábulo proibido “voto”, lança sua candidatura à Presidência da República. Esse mesmo candidato, mesmo preso (e o primeiro tratamento privilegiado que lhe foi dado escancarou as portas para todos os demais), agora será comentarista dos jogos da Copa do Mundo. Evidentemente, o futebol, aí, entrará como Pilatos no Credo.
Vale a pena transcrever um texto do professor George Melão, consagrado especialista na matéria, em seu livro Os segredos do Marketing Político, p. 52: “O partido não pode transformar a inserção publicitária partidária em propaganda eleitoral para determinado(s) político(s) sob pena de sofrer processo por propaganda eleitoral antecipada ou extemporânea, ou seja, os feitos e realizações divulgadas devem ser do partido e não do político”. “Mas também pode ser utilizada para divulgar breves mensagens de dirigentes do Partido, que serão candidatos num futuro próximo”. Ou seja: há sempre um meio, mais ou menos sutil, para contornar proibições.
Qualquer denúncia terá que ser submetida ao crivo do Poder Judiciário, cuja cúpula está enfraquecida por um déficit de credibilidade, em face do patente “decisionismo” e da escandalosa facciosidade. Os debates travados no STF sobre a questão da condução coercitiva mostram bem esse estado de coisas. A decisão adotada foi no sentido da ligeira inconstitucionalidade dessa prática, que passa a ser declarada apenas para efeitos futuros. Ou seja: não era, mas fica sendo. “Honi soit qui mal y pense”.
*Adilson Abreu Dallari é professor titular de Direito Administrativo pela PUC-SP e consultor jurídico.