Campo Grande (MS) – Muito se tem debatido sobre o custeio sindical no Brasil nos últimos anos, mas poucos têm-se apercebido de que a solução foi dada pelo artigo 8º e inciso IV da Constituição Federal, os quais dispõem:
“8º — É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: … IV — a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei” (grifados).
Da leitura desses dispositivos constitucionais decorrem de forma clara e simples duas importantes premissas, quais sejam:
a) liberdade de associação sindical, b) atribuição às assembléias sindicais para fixação das contribuições para custeio do sistema confederativo da representação sindical, c) desconto em folha de pagamento pelas empresas dos valores aprovados pelas assembleias sindicais, d) manutenção da contribuição sindical prevista em lei (na Consolidação das Leis do Trabalho ou CLT).
Até as três primeiras linhas acima citadas tudo caminhava bem, no sentido da organização, filiação sindical e democratização da forma de estabelecimento das receitas sindicais necessárias à manutenção da atividade dos sindicatos, no rumo da liberdade sindical. Todavia, pelos apelos das representações sindicais na assembleia constituinte, sob argumentos de que a extinção da contribuição sindical poderia enfraquecer o sistema de representação sindical, no final dos debates foi acrescentada a parte final do inciso IV do artigo 8º (“independentemente da contribuição prevista em lei”), mantendo-se, assim, a velha contribuição sindical até que desse certo a nova contribuição confederativa.
Mas a verdade é que “a emenda saiu pior do que o soneto”, porque o objetivo nas discussões centrais na constituinte era acabar com a contribuição compulsória e deixar a cargo das assembleias sindicais a criação da forma de financiamentos das atividades dos sindicatos, de forma democrática e sem interferência do Estado.
Nesse rumo andaram as primeiras decisões dos tribunais, reconhecendo normatividade imediata e suficiente do texto constitucional, como norma auto-executável. Exemplificativamente cito duas decisões, uma da Justiça do Trabalho e outra da Justiça Comum, verbis:
“EMENTA: Contribuição confederativa — A contribuição confederativa prevista no artigo 8º, inciso IV, da Constituição Federal é norma auto-aplicável, eis que não está a depender de regulamentação por Lei Ordinária, tratando-se de Contribuição autônoma sujeita apenas à deliberação da Assembléia Sindical” (Ac da SDC do TST RO-DC 165.333/95.4-15ª R, relator ministro Lourenço Prado, D.J.U. de 29.03.96, p. 9.661/3).
“EMENTA (…) A regra do inciso IV, do artigo 8º, da Constituição Federal, que autoriza a assembléia-geral do sindicato a fixar a chamada contribuição para o custeio do sistema confederativo da representação sindical, tem normatividade suficiente para incidir desde a entrada em vigor da Constituição Federal, não configurando, portanto, norma de eficácia limitada. Segundo Cooley a norma auto-executável é aquela que fornece os elementos suficientes para que o direito seja gozado e protegido, ou o dever imposto, o que é bem o caso da regra que facultou a fixação da contribuição confederativa. (…)”. (Ac da 1ª C Civ do TJ RJ, AC 77/94, relator desembargador C. A. Menezes Direito, DJ RJ 17.11.94, p. 224).
Esse era o caminho certo, traçado pela Constituição Federal, mas o problema é que, com o tempo, houve acomodação pela manutenção da contribuição sindical compulsória e a contribuição confederativa aprovada em assembleia, sem interferência e controle do Estado, que seria a única a ser cobrada, perdeu sua razão de ser.
Houve acomodação e abusos por parte da grande maioria dos sindicatos. Digo maioria, porque alguns passaram a devolver o imposto sindical, inclusive ajuizando ações judiciais para assegurar essa prerrogativa, mas o próprio Poder Judiciário não aceitou a iniciativa, acolhendo fundamentação estatal, de que parte daquela contribuição, de natureza tributária, era dinheiro da União (20%, conforme artigo 589 da CLT).
Deu no que deu: o Judiciário, por conta da continuidade da contribuição sindical compulsória, firmou entendimento de que as demais contribuições para custeio do sistema confederativo, assistencial, revigoramento ou fortalecimento sindical e outras da mesma espécie não poderiam obrigar trabalhadores não sindicalizados, sendo devidas apenas pelos associados das entidades sindicais.
A lógica era a seguinte: para custear as atividades sindicais no geral já existia a contribuição sindical obrigatória, paga por todos os membros das categorias, fossem associados ou não dos sindicatos. Assim, continuariam mantidos os efeitos erga omnes dos instrumentos normativos, beneficiando a todos (CLT, artigo 611), por conta da contribuição sindical.
Todavia, importante novidade surgiu no ordenamento jurídico brasileiro, quando a Lei n. 13.467/2017 acabou com a contribuição sindical compulsória (CLT, artigo 578 e seguintes), cuja normatividade foi mantida pelo C. STF no julgamento da ADI n° 5794 (por seis votos a três). Portanto, a partir de 11/11/2017 deixou de existir contribuição sindical compulsória no Brasil, mas continuam as obrigações dos sindicatos de representarem, negociarem e aplicarem a todos os membros das categorias os benefícios conquistados perante os setores patronais.
Com isso, volta-se às linhas gerais do artigo 8º e inciso IV da constituição Federal, quais sejam: a) liberdade de associação sindical, b) atribuição às assembléias sindicais para fixação das contribuições para custeio do sistema confederativo da representação sindical, c) desconto em folha de pagamento pelas empresas dos valores aprovados pelas assembleias sindicais.
Então, cabe retomar os entendimentos primeiros dos tribunais, do reconhecimento da normatividade suficiente do texto constitucional do inciso IV do artigo 8º, como norma auto-executável, bastando a aprovação do custeio pelas assembleias e o respectivo desconto em folha de pagamento de todos os integrantes das categorias, beneficiados pela atuação sindical erga omnes no sistema confederativo da representação sindical.
Nesse modelo constitucional o papel estatal deverá ser de incentivo à promoção da liberdade sindical, atuando por meio do Ministério Público do Trabalho e do Judiciário apenas para coibir abusos e ilegalidades, como ocorre em relação a qualquer outra entidade associativa. É simples assim. Basta que os órgãos do Estado respeitem o primado da liberdade sindical e dêem o bom exemplo.
Raimundo Simão de Melo é doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, professor titular do Centro Universitário do Distrito Federal-UDF/mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, consultor jurídico, advogado, procurador regional do Trabalho aposentado e autor de livros jurídicos.