Campo Grande (MS) – Não há dúvidas de que o serviço público brasileiro precisa de reformas. Nossa última reforma, denominada como tal, foi há mais de 20 anos e não foi complemente implementada.
Desde então, tivemos diversas mudanças incrementais no serviço público, como criação de carreiras, realização de concursos, digitalização, investimento em formação de servidores, entre outras. Elas foram muito importantes para permitir um crescimento e profissionalização do Estado brasileiro.
Mas parecem ter chegado num limite quando vemos os resultados do que o serviço público entrega atualmente. Universalizamos o acesso à educação básica, mas ainda temos resultados sofríveis em indicadores de aprendizagem. Alcançamos mais de 75% de acesso na saúde primária, mas ainda temos problemas de cobertura na atenção especializada e hospitalar. Ampliamos programas sociais, como o Bolsa Família, mas as desigualdades estão crescentes.
Precisamos aumentar cobertura e qualidade de serviços; precisamos fazer políticas que reduzam desigualdades; e precisamos fazer tudo isso num país extremamente grande e heterogêneo e num cenário de restrição fiscal e deslegitimidade do serviço público.
Esses problemas são justificativa suficiente para a necessidade de uma reforma administrativa. No entanto, a proposta da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 32, que está tramitando no Congresso Nacional, está muito longe de solucionar os problemas que precisamos. Pelo contrário, ela tende a aumentar parte deles.
O Estado brasileiro é extremamente desigual. Ao mesmo tempo em que algumas carreiras têm salários exorbitantes e acumulam regalias — em geral no Poder Judiciário — a grande maioria das carreiras que fazem provisão direta de serviços recebe salários baixos.
A média salarial dos municípios, onde estão os professores, profissionais de saúde, guardas municipais e profissionais da assistência social, é de R$ 2.800, sem regalias. Além disso, as diferenças entre os Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo são gritantes.
A proposta da PEC 32 não só não considera desigualdades como ainda exclui de seu desenho original os membros dos Poderes Judiciário e Legislativo, que concentram os maiores salários e benefícios, causando verdadeiras distorções na sociedade brasileira.
A falta de um olhar para essa heterogeneidade do serviço e dos servidores é um dos grandes problemas desta reforma e, caso seja implementada, ela tenderá a aumentar as distorções e prejudicar de forma desigual as mulheres e negros no serviço público.
A pergunta que fica é: mas então, de que reforma o Brasil precisa? E a resposta central é: de uma reforma que busque soluções a partir de um verdadeiro diagnóstico sobre a heterogeneidade do Estado brasileiro e que tenha como princípio norteador a busca de maior efetividade das políticas, inclusão social e redução de desigualdades.
A partir destes princípios, gostaria aqui de propor quatro temas que, a partir do meu diagnóstico sobre o Estado brasileiro, deveriam guiar uma reforma.
Gestão de pessoas
O primeiro tema é gestão de pessoas. O Estado brasileiro gere muito mal seus servidores. Sem esgotar o diagnóstico, temos concursos ruins, sistemas de desempenho ausentes ou sofríveis, número excessivo de carreiras e carreiras mal desenhadas, que não permitem circulação entre áreas e, muitas vezes, desmotivam os servidores.
Embora tenhamos alguns exemplos positivos, nos faltam bons sistemas de avaliação de desempenho e de incentivo. Uma boa reforma deveria diagnosticar estes problemas, a diversidade de sua manifestação e propor soluções gerenciais para enfrentá-los. Não precisamos de mais PECs, precisamos regulamentar as muitas leis que temos sobre este tema e, acima de tudo, precisamos de gestão.
Estrutura
O segundo tema que deveria ser parte do debate é a estrutura organizativa do Estado brasileiro. Carregamos um modelo organizacional burocrático dividido em muitas áreas especializadas que não se conversam. E todo o sistema de gestão reforça isso: o orçamento, o planejamento, o sistema de compras e a alocação de pessoal são todos fundamentados na ideia de separação de áreas, departamentos, secretarias e ministérios.
Esse modelo nos dificulta fazer políticas intersetoriais e integradas, gera sobreposição de funções e espaços em branco e, ao final, compromete a efetividade das políticas e gera ineficiência. Uma reforma precisaria prever modelos mais matriciais, integradores de áreas, com maior flexibilidade para experimentação de modelos organizacionais.
Relação entre Estado e provedores de serviços
O terceiro tema que merece atenção de uma reforma é a relação entre o Estado e as organizações provedoras de serviços públicos.
O Estado brasileiro se expandiu profundamente nas últimas décadas e parte disso se deveu a um sistema de contratação de atores para provisão dos serviços. É o caso, por exemplo, das organizações sociais na saúde e dos convênios em creches e serviços de assistência.
Se, por um lado, essas contratações permitiram ampliar cobertura de serviços, elas ainda pecam por muitos problemas. Temos visto nas últimas semanas diversos casos de corrupção utilizando esses contratos. Mas, para além disso, os serviços contratados são muito heterogêneos, tanto em formato como em qualidade.
Se a parceria parece ser um caminho sem volta, o Estado brasileiro deveria se preparar para fazê-la melhor. A experiência internacional mostra que parcerias para provisão de serviços só funcionam bem quando o Estado está mais forte, e não mais fraco, como muitas vezes tem acontecido no Brasil.
Uma reforma deveria focar em melhorar nossos sistemas de contratação e parcerias, fortalecer as áreas de monitoramento, avaliação e controle, pensar sistemas de controle social das organizações provedoras de serviço, integrar essas organizações em espaços decisórios.
Sistemas de controle
Por fim, o último tema que deveria ser objeto de uma reforma é o da relação entre o Poder Executivo e os sistemas de controle.
O aumento dos sistemas de controle foi, sem dúvida, uma grande conquista democrática. No entanto, seu crescimento sem integração com o Poder Executivo está gerando atualmente diversos problemas.
Quem trabalha na máquina estatal vivencia o chamado apagão das canetas. Gestores estão cada vez mais restritos em sua capacidade de tomar decisão, seja pelos limites impostos pelo sistema de controle, seja pelo medo de uma criminalização da gestão.
Não há dúvidas de que os sistemas de controle devem coibir as práticas nefastas de uso indevido de recursos. Mas, ao atuar de maneira reativa, sem ajudar no processo decisório, os sistemas de controle estão inviabilizando a gestão.
Há atualmente propostas de parte do TCU (Tribunal de Contas da União) e da CGU (Controladoria-Geral da União) de realizar práticas mais integradas e preventivas. Mas ainda prevalece uma lógica de “nós contra eles”, que muitas vezes inviabiliza a tomada de decisão baseada em boa-fé e tentativa de resolução de problemas.
Ao criminalizar a gestão de forma indiscriminada, o sistema de controle pune gestores que têm boa vontade e que, em muitos momentos da história, foram capazes de resolver grandes problemas públicos justamente por sua capacidade de tentar, experimentar e inovar e não ser punido pela tentativa. As propostas de mudança aqui não devem buscar menos controle, mas um controle mais preventivo, que esteja mais próximo do cotidiano dos gestores e os ajude a tomar decisões melhores.
Não há dúvidas de que o Estado brasileiro precisa de uma reforma que busque construir um Estado melhor, e não menor. E a melhoria do Estado brasileiro deve partir de um diagnóstico sobre seu real funcionamento e sobre suas heterogeneidades. E deve, acima de tudo, se basear em propostas construídas no debate público envolvendo a sociedade que é, afinal, a mais impactada pelas ações e inações do Estado brasileiro.
Gabriela Lotta é Professor of public administration at Fundação Getulio Vargas. Visiting professor at Oxford. Coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)