Campo Grande (MS) – A proposta de Reforma Administrativa elaborada pelo Ministro Paulo Guedes era bem mais abrangente do que aquela que foi enviada ao Congresso Nacional. Ela previa uma verdadeira reforma do Estado com enxugamento do seu tamanho. Tanto é que previa a extinção de municípios eternamente dependentes de recursos financeiros da União, sem conseguirem sobreviver com tributos próprios.
Se a constituição prevê o mecanismo de criação de novos municípios, por meio de plebiscito, era natural que previsse, também, a hipótese de sua extinção ou reincorporação ao município de origem, sempre que inviabilizada a sua existência autônoma. Previa também a extinção de penduricalhos como licença prêmio, quinquênios, férias superiores a 30 dias anuais, incorporação de valores recebidos no exercício de cargos e funções, aumentos salariais retroativos etc..
Porém, a proximidade do calendário eleitoral fez com que aquela proposta original ficasse restrita à reforma do regime jurídico do servidor público. Essa proposta era bem simples, preservando os cargos efetivos apenas aos integrantes da carreira de Estado (diplomatas, auditor fiscais, advogados públicos etc.) passando tudo o mais para o regime celetista.
Todavia, os servidores públicos, lotados nas três esferas do Poder (Legislativo, Judiciário e Executivo) exerceram pressões contínuas e permanentes sobre os parlamentos com receio de perder seus privilégios, apesar da expressa disposição de que o novo regime não seria aplicável aos atuais servidores públicos, mesmo aqueles que se encontram em estágio probatório que teriam a avaliação do desempenho por critério em vigor. Querem, na verdade, perenizar a atual situação ao longo das gerações de servidores públicos. Nem os avanços tecnológicos na área da informática, que importaram na redução de mão de obra no setor privado, teve qualquer impacto no setor público, aonde o número de servidores concursados e comissionados crescem da noite para o dia.
Como resultado dessas pressões ilegítimas, o Relator da PEC 32/20 foi alterando continuamente o seu relatório, resultando em uma proposta confusa que mistura reforma administrativa com a reforma previdenciária, piorando tudo em relação ao regime vigente.
O relatório final reelaborado pelo Deputado Arthur Oliveira Maia, no dia 22/9/21, e apresentado meia hora antes de sua tumultuada votação foi aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, no dia 23/9/21, por 28 votos a favor e 18 votos contrários, sem apreciação dos 21 destaques. Essa proposta, praticamente, desfigurou a proposta original do governo, representando um retrocesso na disciplina do servidor público.
Vejamos os principais aspectos do texto básico aprovado açodadamente:
a) A estabilidade foi estendida para todos os servidores pertencentes a um número enorme de diferentes carreiras, com a agravante de dificultar a avaliação de seu desempenho. O processo administrativo para demissão só poderá ser instaurado se o servidor tiver duas avaliações insatisfatórias consecutivas ou três intercaladas. A definição por lei complementar das carreiras típicas de Estado perdeu a razão de sua existência uma vez que todos os servidores passam a gozar de estabilidade. O descuidado Relator sequer atentou para esse fato, mantendo uma norma que se tornou dispensável. Os calorosos debates travados na Comissão, confundindo procedimento de avaliação de desempenho com o processo administrativo de verificação desempenho para fins de demissão, exigindo-se o contraditório e ampla defesa em ambas as situações, está a sinalizar futuras demandas judiciais caso o texto seja aprovado como se encontra. Na verdade, bastava tão só a lei complementar regulamentar o texto constitucional já existente (inciso III, do art. 41 da CF). Não se cumpre a determinação constitucional para criar nova determinação. É sempre assim. Não faz menor sentido!
b) Possibilita redução de jornada e de vencimentos de até 25% em caso de crise financeira. É o tipo de norma inserida para se somar a outras normas meramente dispositivas. Preceito normativo semelhante da LRF (art. 23, § 2º da LC nº 101/2000) foi declarado inconstitucional pelo STF (Adin nº 2.238-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 9-5-2002). Agora, a norma é constitucionalizada;
c) Veda férias anuais superiores a 30 dias para todos os servidores e membros das Cortes de Contas, deixando de fora os membros da Magistratura e do Ministério Público. Não ficou claro se as proibições de demais penduricalhos (aumento salarial retroativo, incorporação de valores recebidos no exercício e cargos ou funções; licença prêmio, quinquênios etc.) que constavam da proposta original restaram mantidas ou eliminadas;
d) Dispensa excessiva proteção aos integrantes da Segurança Pública como se tratasse de uma República de Policiais. Preconiza aposentadoria integral para policiais, agentes penitenciários e socioeducativos, bem como tratamento benéfico a seus pensionistas. Dessa forma, anula-se parte da redução de gastos obtida, à dura pena, com a Reforma Previdência implantada pela EC nº 103, de 12-11-2019. Os benefícios retroagem à data da Emenda nº 103. Mal se inventou um mecanismo para cobrir o rombo resultante de desgoverno (calote dos precatórios) já se preconiza outro rombo das contas públicas. E mais, monopoliza o acesso a cargo de Delegado-Geral da Polícia Federal. Confere foro privilegiado ao Delegado-Geral da Polícia Federal e aos Delegados-Gerais das Polícias Civis.
e) Prevê a assinatura de contratos de trabalhos temporários com até dez anos de duração, mediante concurso seletivo especial. Não se sabe para que fim, nem se descobre. Cheira algo encomendado!
f) Introduz oito novos princípios da administração pública, em sua maioria, vagos e imprecisos (imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança e subsidiariedade) ao lado das cinco atualmente previstos no art. 37 da CF, além de aumentar consideravelmente normas constitucionais voltadas para o funcionalismo público. Há excesso de princípios, potencializando elevação de litígios perante a Corte Suprema já congestionada;
g) Introduz visão subsidiária do Estado limitando as políticas de fomento das atividades econômicas ao inserir norma proibindo proibindo ao “Estado instituir medidas que gerem reservas de mercado que beneficiem agentes econômicos privados, empresas públicas ou sociedades de economia mista ou que impeçam a adoção de novos modelos favoráveis à livre concorrência, exceto nas hipóteses expressamente previstas nesta Constituição”. Em tese, podem ficar inviabilizadas as atuais ações das agências oficiais de fomento (BB, CEF, BNDES, BA e BN), pois bastará que um hiper-empresário do setor privado reclame contra a “quebra” do princípio da livre concorrência;
h) Atribuição ao Presidente do poder de extinguir entes da administração indireta. No sistema vigente o Presidente da República só pode, por meio de Decreto, promover a “organização e funcionamento da administração federal, quando não implica aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos “” (art. 84, VI, a da CF) e extinguir cargos quando vagos (art. 84, VI, b da CF). São as duas únicas hipóteses excepcionais em que o Decreto do Executivo atua de forma autônoma. Agora, a Reforma sob comento introduz uma alínea ao inciso VI, do art. 84 da CF para conferir ao Presidente da República a faculdade de extinguir entes da administração indireta mediante decreto. Na prática, o Presidente da República poderá partir para a extinção de órgãos e instituições que agem contra a sua vontade, mas, dentro da legalidade. Pode, por exemplo, extinguir o INPE ou o IBAMA que, com seus posicionamentos no cumprimento de disposições legais, representam um obstáculo ao plano de desenvolvimento econômico desejado pelo Chefe do Executivo.
i) Prevê a faculdade de o poder público firmar parceria com o setor privado para a execução de serviços públicos, a exemplo da PPP para execução de obras públicas. Não há coerência do legislador: de um lado engessa a administração pública conferindo estabilidade a milhares de servidores que nada têm a ver com carreira de Estado e, de outro lado, flexibiliza do regime estatutário para execução de serviços cabentes a servidores efetivos. Isso é o mesmo que gerar o caos no funcionalismo mediante mistura generalizada do que é público com o que é privado. Aliás, a privatização já atingiu o orçamento público por meio da conhecida emenda do Relator (RP9). Sabe-se que o Ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, desviou R$1,4 milhão do chamado “orçamento secreto” para construir um mirante turístico em Monte das Gamaleiras, no Rio Grande do Norte que dista 300 metros de sua propriedade onde está sendo projetado a construção de um condomínio de alto luxo.
Em suma, o relatório do relator aprovado, por maioria de votos pela Comissão Especial, retira as poucas virtudes da proposta original do governo; promove uma contrarreforma previdenciária onerando o erário em tempo de crise financeira do Estado; cria mecanismo permanente de manutenção de maus servidores colocando empecilhos do processo de avaliação de desempenho; mantém todos os privilégios legítimos e ilegítimos para determinadas categorias.
Concluindo, trata-se de uma reforma conduzida por servidores públicos de diferentes matizes que ao invés de servir à sociedade dela vêm se servindo ao longo das décadas. Como os congressistas podem se livrar deles? Eis a pergunta inconveniente!
É preferível deixar como estão as Seções II e III do Capítulo VII da CF (arts. 39 a 42 da CF) que regem os servidores públicos, limitando-se a regulamentar, por lei complementar, o processo de avaliação de desempenho do servidor, para fins de sua demissão, com prescrito no inciso III, do art. 41 da CF, desde 5-10-1988.
O bom desempenho do funcionalismo público não depende de normas legais, muito menos de normas e princípios constitucionais. Basta a vontade política para criar uma burocracia estável e eficiente, como a que tínhamos à época do antigo DASP – Departamento de Administração de Pessoal – dirigido por um servidor de carreira, que foi extinto durante o regime militar que introduziu o cargo em comissão por razões de todos conhecidos, mas, que após a normalidade institucional, por conveniência política, aqueles cargos em comissão não só foram mantidos, como também, decuplicados.
Hoje, o Estado Federal Brasileiro é prisioneiro dos burocratas ineficientes incrustados nas três esferas do Poder que impedem a elaboração de normas jurídicas simples, claras e objetivas. Em mãos deles tudo se transforma em um inferno jurídico com normas complexas, vagas, imprecisas e nebulosas, sem a menor preocupação com o pragmatismo. Quando clara a norma é para proclamar o óbvio.
Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário – IBEDAFT.
Fonte: Migalhas