Campo Grande (MS) – O aumento da desigualdade — tanto entre países como dentro deles — é a pior consequência econômica da pandemia do coronavírus, argumenta Roger Ferguson, que foi vice-presidente do Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA). O copo cheio disso, pondera o economista, é que as ferramentas disponíveis para atacar o problema trazem benefícios difusos para a sociedade e para a própria economia.
— Concluímos que atacar as causas profundas da desigualdade na sociedade beneficia toda a sociedade, não apenas aqueles diretamente afetados por ela — afirma Ferguson, em entrevista à coluna por telefone.
Ele está especialmente atento ao comportamento do mercado de trabalho americano e acredita que a pandemia pode deixar como legado uma transformação na dinâmica salarial em favor dos trabalhadores.
Ferguson foi vice-presidente do Fed entre 1999 e 2006, nos últimos oito anos do longo “reinado” de Alan Greenspan à frente da autoridade monetária americana. Seu nome chegou a circular como possível sucessor de Greenspan, mas foi Ben Bernanke que herdou a crise financeira global.
(Nas últimas semanas, seu nome voltou a circular como possível sucessor de Jerome Powell à frente do Fed, mas o próprio Ferguson concorda que é muito mais provável que o atual presidente do Fed seja reconduzido ao cargo em fevereiro).
Após deixar o Fed, Ferguson fez carreira na iniciativa privada e hoje ocupa a vice-presidência da Apollo Global Management, que gere mais de US$ 450 bilhões em investimentos pelo mundo. Ferguson também está no conselho da Alphabet, holding da Google. Aos 70 anos, o economista é PhD por Harvard e é considerado um dos executivos negros mais influentes dos EUA.
Ferguson participa na quinta-feira do Itaú Macro Vision 2021, evento on-line sobre macroeconomia organizado pelo banco nos dias 11 e 12.
Quais foram os efeitos mais marcantes e surpreendentes da pandemia na economia global?
Tanto nos EUA como globalmente, o efeito mais marcante é triste e se apresenta de forma muito dramática. A desigualdade dentro dos países e entre eles tornou-se muito nítida e clara. Uma pandemia sanitária se transformou em pandemia socioeconômica. Então a desigualdade é uma das questões mais importantes com as quais deveríamos nos preocupar.
Os governos estão fazendo algo a altura para tratar disso no curto prazo?
Eu não acho que possamos resolver esse problema no curto prazo. Mas eu vejo uma série de países tomando medidas importantes para tratar da desigualdade dentro de suas fronteiras. A China fez movimentos dramáticos para tentar amenizar sua desigualdade econômica, e o governo tem usado o termo “prosperidade comum”. Aqui nos EUA, o governo Biden apresentou um programa extenso de gastos sociais. A tendência de aumento da desigualdade de renda nos EUA começou em meados dos anos 70, logo ela não será revertida rapidamente. Mas é um passo importante para os EUA. Não posso falar com propriedade sobe outros países, mas tenho certeza de que a questão da desigualdade está no centro do debate em outros lugares.
Combater a desigualdade sempre suscita um debate acalorado nos EUA, já que a direita não costumar enxergar nela um problema. O plano de Biden está na direção certa?
Resolver questões sociais tem um impacto surpreendentemente positivo para o crescimento da economia. Uma série de estudos realizados aqui nos EUA indica que aumentar o percentual de formados com nível superior, diminuir as disparidades de patrimônio entre negros e brancos e aumentar o acesso à moradia são políticas que podem ter um impacto muito positivo sobre crescimento do PIB. Estamos falando de até dois pontos percentuais. Concluímos que atacar as causas profundas da desigualdade na sociedade beneficia toda a sociedade, não apenas aqueles diretamente afetados por ela.
É uma situação ganha-ganha?
Sim. É como dizem: a maré, quando sobe, eleva o nível de todos os barcos.
Como o sr. avalia o trabalho do Federal Reserve até agora na pandemia? A decisão de manter os juros perto de zero não é perigoso diante da inflação alta?
Tanto o Fed como as medidas fiscais adotadas na pandemia deveriam ser parabenizados pelas respostas rápidas, agressivas e criativas que deram ao problema. No início da pandemia, tivemos uma recessão muito acentuada, mas que foi muito curta por causa daquelas medidas. Hoje, acho que o Fed julga claramente que a inflação que estamos vendo é transitória e se deve às condições das cadeias de suprimentos globais, que devem melhorar com o tempo, e à taxa relativamente baixa de participação na força de trabalho hoje nos EUA. Essa última, aliás, é uma questão importante a se observar. Apesar de uma sólida criação de vagas, não estamos vendo as pessoas voltarem para o trabalho, e a taxa de participação está 1,7 ponto percentual menor do que no início da pandemia. Isso tem impacto na dinâmica dos salários e também na inflação.
O sr. concorda que são condições transitórias?
Preciso dizer que a questão do trabalho me preocupa porque muita gente pensava que a taxa de participação na força de trabalho aumentaria em setembro com o fim dos benefícios emergenciais para desempregados, mas isso não aconteceu. A participação de pessoas entre 25 e 60 anos está em níveis extremamente baixos.
O que está impedindo as pessoas de voltar ao trabalho?
São vários fatores. Tem gente que precisa tomar conta dos filhos, outros, de idosos, outros estão preocupados com a própria saúde…. E algumas pessoas reconheceram durante a pandemia que, enquanto seus trabalhos são considerados essenciais, seus salários são relativamente baixos. Temos visto movimentos grevistas, companhias aéreas pagando até três vezes a remuneração normal para a tripulação trabalhar na temporada de férias etc. Logo, começamos a ver uma mudança na dinâmica salarial por aqui.
Esse será um legado da pandemia?
Para uma parte da força de trabalho, a pandemia pode representar uma mudança importante na dinâmica e na expectativa salarial. Então, será preciso esperar para ver, mas isso pode ser de fato um legado da pandemia. Pelo menos, devemos estar atentos a isso.
Por que a cadeia de suprimentos global está tão desajustada?
É um tema complexo. Parte disso se deve à falta de investimentos em infraestrutura. Parte tem a ver com a dinâmica da força de trabalho de que falávamos. Também há razões pontuais, como greves, como ocorre em segmentos da mineração. Logo, é uma combinação de diversos fatores, o que torna mais difícil haver uma solução única.
Mas a duração dos problemas não é surpreendente?
Acho que é uma surpresa para todos. O próprio presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, sugeriu que a inflação durou mais do que ele esperava. Ninguém previu que as questões do mercado de trabalho seguiriam até hoje. O crescimento da economia americana, sobretudo a manufatura, também foi surpreendente, e isso tem impactos na cadeia de suprimentos.
O pacote de US$ 1 trilhão para infraestrutura aprovado no Congresso dos EUA terá impactos duradouros para a economia dos EUA?
Acho que sim. O país tem projetos que estão atrasados há uma geração. O pacote é um grande investimento na economia americana e deve torná-la mais resiliente e acelerar seu crescimento.
Mas ele não deveria ser maior?
(Risos). Dado o processo que levou para chegarmos até aqui, não acho que vale a pena questionarmos se não poderíamos fazer mais.
Como o Brasil está sendo visto pelos investidores internacionais? Com seus problemas, o país ainda está no radar dos fundos globais?
Definitivamente, sim. O Brasil tem um peso muito relevante na agricultura e outras matérias-primas, mas também possui uma classe consumidora que interessa às marcas globais. Logo, o Brasil é visto como “investível”. É claro que os investidores querem ver como ele se sai da pandemia, mas o país segue sendo um dos maiores mercados emergentes para os fundos globais.
Mas os economistas brasileiros observam que os país está perdendo relevância para os investidores externos…
Existem, sim, problemas, e você os conhece muito melhor do que eu. Mas é impossível para um investidor global ignorar uma economia do tamanho do Brasil. Existem muito poucas economias com a escala do Brasil em termos populacionais, de recursos e capacidades. Eu não estou tratando aqui de dados de investimento estrangeiro direto (IED), mas de um sentimento mais anedótico. Nos círculos que eu frequento as pessoas continuam falando sobre investir no Brasil.
Fonte: O Globo