O novo contencioso administrativo da CBS e do IBS

Publicado em: 19 fev 2024

Campo Grande (MS) – A reforma tributária, por fim, começa a concretizar-se. Em dezembro passado, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 132/2023, fruto do texto final da PEC 45. Um fato histórico, marco transformador para a tributação brasileira sobre o consumo.

Celebrada a aprovação e a promulgação da EC 132, aguardamos a tramitação dos projetos de lei complementar que regularão os dispositivos constitucionais introduzidos na Constituição, já sabendo que à frente serão anos de transição entre o regime tributário antigo e o novo.

Mesmo com várias questões em aberto e à espera da atividade do legislador complementar, a aprovação da EC 132 reafirma a urgência de discutirmos o futuro do novo contencioso fiscal administrativo.

Por ora são incipientes os elementos para compreendermos como serão enfrentadas e julgadas as futuras controvérsias relacionadas à CBS e ao IBS[1]. Desconhecemos até então quais readequações serão necessárias no Carf e nas DRJs para que julguem a CBS. Também não se tem visibilidade do que mudará nos tribunais administrativos estaduais, como o TIT, à vista das competências do Comitê Gestor do IBS e das atribuições que serão compartilhadas entre os entes da federação. Tampouco existem indicativos sobre qual tipo de remodelagem haverá nos Conselhos Municipais, que atualmente julgam disputas concernentes ao ISS, e que passarão a exercer competências compartilhadas com o Estado em relação ao IBS.

Não só no campo do contencioso propriamente isso se dará: será extinto o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz)? É mais um exemplo de que nossas dúvidas também são iniciais.

Certo é que ocorrerá um intenso ajuste de competências e das atribuições nos órgãos julgadores e na administração fazendária. Porém, não está claro se esse ajuste terá o escopo limitado à acomodação das novas matérias e compartilhamentos de competências, ou se, mais que isso, será substancialmente transformativo a ponto de erigir uma nova concepção de contencioso mais simples e moderno, alinhado aos objetivos perseguidos pela EC 132.

Se por um lado a reforma do processo tributário é um tema autônomo, que tramita em paralelo no Congresso, com seus próprios projetos e desafios, por outro lado, não se pode ignorar que muitas das modificações relevantes acontecerão já nesse atual momento, a partir da legislação complementar que disponha sobre o Comitê Gestor e os remanejamentos de competências dos entes federativos no limite delegado pela EC 132.

Nessa linha, vale lembrar que a legislação complementar terá que lidar com a vagueza deixada pela EC 132 quanto à competência atribuída ao Comitê Gestor do IBS para “decidir o contencioso administrativo” (art. 156-B, III). Ao colmatar essa indefinição jurídica, identificando com maior precisão os desdobramentos do art. 156-B, III, tomaremos conhecimento da dimensão da reestruturação do processo administrativo que envolverá principalmente os estados e municípios.

Além disso, como se sabe, a EC 132 atribuiu à lei complementar a competência para dispor acerca da fiscalização, do lançamento, da cobrança, o que tangenciará as etapas iniciais que deflagram o processo administrativo tributário. E ademais, estipulou que as administrações tributárias e procuradorias dos estados, Distrito Federal e municípios poderão definir hipóteses de delegação ou de compartilhamento de competências, cabendo ao Comitê Gestor a coordenação dessas atividades administrativas com vistas à integração entre os referidos entes federativos (inciso V, do § 2º, do artigo 156-B). Ou seja, nesse cenário traçado pela EC 132, até que sobrevenham tais normas, não é possível prever os impactos que advirão das novas divisões bem como das integrações, e como será buscado o necessário equilíbrio federativo.

Com essas alterações, e em especial as competências que serão alteradas para dar lugar e funcionalidade ao Comitê Gestor, verificaremos novas facetas e mecânicas no contencioso tributário administrativo. O processo, que não é um fim em si mesmo, mas instrumento do direito material, será modificado para que consiga responder adequada e satisfatoriamente ao novel sistema. Logo, ainda que a reforma do contencioso tributário possa se fortalecer em outros ambientes e projetos independentes, devemos estar atentos a essas mudanças de natureza processual que decorrerão da própria reforma tributária da EC 132.

Em função disso, é preciso zelar para que o legislador complementar, ao concretizar o programa e as missões que lhe foram atribuídas pela EC 132, cumpra o arcabouço constitucional relativo às matérias processuais. Ou seja, ao iniciar o redesenho de competências e atribuições relacionadas à administração fazendária, procuradorias e tribunais administrativos – que será desdobrado em leis ordinárias posteriores –, harmonize seus pressupostos, valores e toda sua produção normativa ao disposto na Constituição Federal quanto ao processo.

Assim, chegando ao ponto crucial deste artigo, o legislador complementar deverá atentar-se ao alinhamento com o devido processo legal e as demais garantias processuais resguardadas pela Constituição, ao adentrar o processo tributário e traçar as principais diretrizes do Comitê Gestor. Com efeito, caberá assegurar, sobretudo, que:

  1. Os atos e decisões do Comitê Gestor formem-se de modo democrático, fundamentado e público;
  2. Haja previsão de duplo grau de jurisdição para a rediscussão e a revisão dos atos e decisões que possam prejudicar os interesses e direitos do contribuinte;
  3. Não se promova, em hipótese alguma, a reinstituição do depósito recursal já refutado pelo STF;
  4. Seja respeitada a vedação de criação de tribunais de exceção e seja observado o princípio do juiz natural;
  5. Haja respeito à ampla defesa e ao contraditório prévio e substancial para que o contribuinte tenha efetiva faculdade de manifestar-se previamente em relação a todos os atos que possam atingi-lo e prejudicá-lo;
  6. Seja garantida a inafastabilidade da jurisdição, não podendo excluir a apreciação judicial de qualquer lesão ou ameaça aos direitos do contribuinte;
  7. Sejam amplamente públicos os atos e as decisões, afastando-se práticas “interna corporis” e herméticas repudiadas pela Constituição;
  8. Assegure a imparcialidade dos julgadores na composição paritária prevista pela EC 132; e
  9. Valorize o primado de duração razoável do processo e a eficiência processual.

Por outro lado, em relação não só ao Comitê Gestor do IBS, mas também às controvérsias jurídicas relacionadas à CBS que provavelmente caberão ao Carf, o legislador complementar terá a oportunidade de consolidar os instrumentos de consensualidade tributária. Tais formas de resolução de conflitos tem sido encampadas mais recentemente, inclusive por louváveis iniciativas da Receita Federal e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, e espera-se que possam estar presentes dentre as prioridades do legislador. À vista do anseio pela redução dos graus de litigiosidade, a consensualidade é um tema saliente e que deve ser lembrado.

Em suma, ainda que a EC 132 tenha fornecido poucas diretrizes básicas relacionadas ao contencioso fiscal, o legislador complementar deverá buscar o necessário alinhamento com os pilares de processo já dispostos na Constituição. Muitos dos direitos processuais constitucionais hoje presentes no contencioso tributário já foram examinados pela Suprema Corte e o contribuinte desfruta de uma segurança jurídica que é confirmada também pela jurisprudência, não podendo isso se perder nem se sujeitar a riscos de retrocesso no novo regime tributário.

Portanto, em que pese a reforma tributária detenha um inequívoco aspecto inaugural, é preciso trazer para o seu cenário as premissas de estrutura elementar delimitada pela Constituição em relação todos os direitos e garantias processuais já sedimentados. Além disso, é muito oportuna e relevante a maximização dos instrumentos consensuais de solução de conflito para a construção do novo contencioso tributário administrativo.


[1] Ver também o que já pontuamos anteriormente: SENNA LÍSIAS, Andressa. Como será o contencioso administrativo para a CBS e o IBS? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-07/como-sera-o-contencioso-administrativo-para-a-cbs-e-o-ibs/

Fonte: JOTA

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