A MP 1.045 e a nova (des)construção de direitos trabalhistas

Publicado em: 19 ago 2021

Campo Grande (MS) – Foi aprovado pela Câmara dos Deputados o texto-base do Projeto de Lei de Conversão nº 17, 2021 (PLV), da Medida Provisória nº 1.045, de 2021[1], que recria o programa emergencial de manutenção de emprego e renda e traz modificações na legislação vigente.

O texto foi encaminhado para as considerações do Senado Federal[2] e, caso seja aprovado sem nenhuma modificação, seguirá para a sanção do presidente da República, para sua conversão em lei ordinária.Primeiramente, vale lembrar que quando a Medida Provisória 1.045 foi editada pelo Poder Executivo, em 28.4.2021, com apenas 25 artigos, esta tinha por objetivo, tão-somente, instituir o novo programa emergencial de manutenção do emprego e da renda, além de trazer medidas de combate para o enfrentamento do estado de calamidade, decorrente do coronavírus.

Contudo, após as inúmeras emendas oferecidas ao texto original, a Medida Provisória passou a ter 93 artigos, tratando-se, na verdade, de uma continuação da reforma trabalhista iniciada pela Lei 13.467/17, de forma mais ampla e aprofundada.

O texto final, que é a emenda substitutiva global pela Câmara dos Deputados, foi aprovado, porém, sem nenhum debate, com novidades que não existiam no texto inicial.

Indubitavelmente, pode-se dizer que as alterações trazidas são verdadeiros “jabutis” legislativos e processuais, que não possuem relação com a finalidade para o qual foi criada, primitivamente, a referida medida provisória.

Segundo nos ensina o Professor Guilherme Guimarães Feliciano e Rodrigo Trindade[3], “a tentativa de inserir temas estranhos ao texto original de medida provisória não é nova. O STF já teve oportunidade de reconhecer a inadequação do procedimento, por agredir expressos dispositivos da Constituição. No julgamento da ADI n 5.127, declarou-se que a prática dos ‘jabutis’ viola o devido processo de tramitação legislativa e descumpre o compromisso democrático anotado na Constituição.”.

As centrais sindicais externaram, através de uma nota oficial[4], o repúdio aos “jabutis” inseridos na Medida Provisória 1.045, pelo fato de não ter havido o amplo debate entre os trabalhadores, empregadores e o governo.

Frise-se, por oportuno, que o debate do contrato verde e amarelo, inserido pela Medida Provisória 905/2019[5], e posteriormente revogado pela Medida Provisória 955/2020[6], ressurge, contudo, sob o nome de Priore, que significa programa primeira oportunidade e reinserção no emprego.

O programa é destinado para as pessoas com idade entre 18 e 29 anos, referente ao primeiro registro na carteira de trabalho, como também àqueles com idade igual ou superior a 55 anos, que estejam sem vínculo formal há mais de 12 meses.

O artigo 30[7] do PLV determina a redução da alíquota do FGTS, podendo ser de 2% para microempresa, 4% para empresas de pequeno porte e 6% para as demais empresas. Além disso, a multa de indenização do FGTS é reduzida para 20%.

De outro norte, o artigo 43 e seguintes do PLV traz o chamado regime especial de trabalho incentivado, qualificação e inclusão produtiva (REQUIP), que aumenta ainda mais o trabalho precário e frágil, sem vínculo de emprego.

Neste panorama, o trabalhador não terá os direitos trabalhistas, e nem previdenciários, mas sim uma bolsa auxílio que não irá ultrapassar a quantia de meio salário-mínimo, além de um vale transporte, fragilizando ainda mais a relação, fazendo com que se torne ainda mais escassa.

Lado outro, o PLV institui em seu artigo 77 e seguintes o programa nacional de prestação de serviço social voluntário, para pessoas com idade entre 18 e 29 anos; e, superior a 50 anos, na qual este trabalhador voluntário, receberá uma contraprestação pecuniária, a ser regulamentada pelos Poderes Executivos dos Municípios[8].

Com efeito, o referido dispositivo previsto no PLV contraria a própria legislação que dispõe sobre o serviço voluntário, pois, conforme preceitua o artigo 1º da Lei 9.608, de 18 de fevereiro, “considera-se serviço voluntário, para os fins desta Lei, a atividade não remunerada prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza ou a instituição privada de fins não lucrativos que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência à pessoa.”.

Portanto, verifica-se que essas mudanças acima referidas, feitas de forma atabalhoada e açodada, terão forte impacto na legislação vigente.

O artigo 86[9] do PLV faculta estender a jornada de trabalho, até 8 horas, para as profissões com jornadas diferenciadas, definidas em legislação específica, sendo que no inciso I prevê adicional de 20%, em afronta direta ao artigo 7º, inciso XVI, da Constituição Federal[10].

Ainda, houve modificação do artigo 293 da CLT, permitindo o trabalho por até 12 horas diárias dos empregados em minas de subsolo, que caminha, em sentido totalmente contrário, ao propósito preambular da medida provisória. Ora, tais trabalhadores, ao realizarem as suas atividades nas minas de subsolo, estão totalmente vulneráveis a acidentes, ao contágio de doenças, dentre outros riscos graves, como são os casos de mortes.

Sem qualquer relação com o objetivo e a finalidade para o qual a Medida Provisória foi criada, o PLV modifica a norma para limitar o acesso ao Poder Judiciário, não somente na esfera da Justiça do Trabalho, mas também altera a Lei nº 5.010/66, que organiza a Justiça Federal; modifica outrossim o Código de Processo Civil e a Lei 10.259, que dispõe sobre a instituição dos juizados especiais cíveis e criminais.

Observa-se, em realidade, que essas reformulações nem sequer têm qualquer ligação com a ideia original da MP 1.045, que seria adoção de medidas complementares para o enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública.

No mesmo sentido, a PLV aprofunda a reforma trabalhista, no que tange ao procedimento de jurisdição voluntária para homologação de acordo extrajudicial. Isso porque, enquanto a Lei 13.467/2017 permitia ao juiz analisar o acordo, o PLV altera o artigo 855-D, passando a dispor que “as partes poderão estabelecer no acordo a quitação geral do contrato de trabalho ou a quitação apenas das parcelas e dos valores expressamente declarados.”.

Desse modo, o Juiz não poderá remover do acordo entabulado entre as partes cláusula que considere ilegítima ou inconstitucional, cabendo, doravante, somente à análise da validade do negócio jurídico.

Em arremate, não se pode perder de vista a importância do papel histórico desempenhado pelo Direito do Trabalho. Tornar a mão de obra mais barata, não implica em dizer, inquestionavelmente, que haverá garantias de emprego, pois, o que assegura efetivamente a criação de novos empregos é o crescimento da economia, e não a redução de direitos trabalhistas.


[1]Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2279513. Acesso em 16.08.2021.

[2] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01l6qqx43jdx1j1fbedyxtrfbro17411506.node0?codteor=2057215&filename=Tramitacao-MPV+1045/2021. Acesso em 17.08.2021.

[3] Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-ago-08/feliciano-trindade-relatorio-conversao-mp-10452021?fbclid=IwAR36g5cV3_FakdqjEbljMEpu-VYBv_isUV8LBcenRdJIdo-nWAmUTE4FFTo . Acesso em 17.08.2021.

[4] Disponível em https://download.uol.com.br/files/2021/08/1462560450_nota-das-centrais-sindicais-mp-1045-11.08.2021.pdf . Acesso em 17.08.2021.

[5] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2229308 . Acesso em 16.08.2021.

[6] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2250246 .Acesso em 16.08.2021.

[7] Art. 30. No contrato celebrado por meio do Priore, a alíquota mensal relativa aos depósitos para o FGTS, de que trata o art. 15 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, será de: I – 2% (dois por cento) para a microempresa, de que trata o inciso I do caput do art. 3º da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006; II – 4% (quatro por cento) para a empresa de pequeno porte, de que trata o inciso II do caput do art. 3º da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006; e III – 6% (seis por cento) para as demais empresas.

[8] Art. 79. Os Poderes Executivos dos Municípios regulamentarão: (…). IV – o valor da contraprestação pecuniária mensal devida pelo desempenho das atividades, que não poderá ser inferior ao valor horário do salário mínimo;

[9] Art. 86. No caso de atividades ou de profissões com jornadas diferenciadas estabelecidas em lei, será facultada a extensão continuada da duração normal do trabalho até o limite estabelecido no caput do art. 58 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, assegurados ao empregado os seguintes acréscimos: I – as horas adicionais que passam a compor a duração normal do trabalho, no regime de jornada complementar facultativa, serão remuneradas com acréscimo de 20% (vinte por cento), não se confundindo com as horas extras eventuais que venham a ser ajustadas conforme o art. 59 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943

[10] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XVI – remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal.

Ricardo Calcini é mestre em Direito pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador Acadêmico do projeto “Prática Trabalhista” (Revista Consultor Jurídico – ConJur), palestrante e instrutor de eventos corporativos pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe, e membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP).

Leandro Bocchi de Moraes é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD), pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô, membro da Comissão Especial de Direito do Trabalho da OAB-SP e pesquisador do Núcleo “Trabalho Além do Direito do Trabalho” da Universidade de São Paulo – NTADT/USP.

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