Campo Grande (MS) – Em setembro de 2020, o governo federal enviou ao Congresso Nacional uma proposta de Reforma Administrativa (PEC 32/2020) com a justificativa de combater “privilégios” do serviço público no Brasil. Sem discussão com a sociedade, que pudesse construir um desenho de reforma necessária aos desafios colocados, não houve apresentação de nenhum estudo técnico que apontasse tais privilégios ou sustentasse a máxima de que o Estado brasileiro é muito grande.
Por isso, a sociedade permanece cheia de dúvidas quanto à proposta, que tem gerado inquietação entre servidores e aqueles que se preocupam com a prestação de serviços públicos de qualidade.
Assim, nos propomos a explicar, em tópicos, os principais pontos dessa reforma:
O QUE É?
- Proposta de Emenda Constitucional que dispõe sobre regras para os servidores que ingressarem no serviço público após a promulgação da PEC
- Extingue o Regime Jurídico Único, divide os servidores públicos em quatro classes de acordo com diferentes tipos de vínculos e cria novas possibilidades para a perda de cargo público
- Retira da competência do Poder Legislativo a criação e extinção de ministérios e órgãos da administração pública ao autorizar o Poder Executivo para dispor, por decreto, sobre extinção e transformação de funções ou cargos públicos ((esse dispositivo foi eliminado da proposta na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara).
- Flexibiliza o princípio da estabilidade para novos servidores
FIM DOS PRIVILÉGIOS?
Um estudo feito por Wellington Nunes (UFPR) e José Celso Cardoso Júnior (Ipea) mostra onde estão os privilegiados em termos de remuneração no serviço público federal. Eles usaram uma base de dados produzida pelo Atlas do Estado Brasileiro, a partir da Relação Anual de Informações Sociais, que contém estatísticas relativas aos vínculos de trabalho ativos e permanentes do setor público federal civil brasileiro, nos três poderes, para os anos de 2000, 2005, 2010, 2015 e 2018. Você pode conferir o estudo aqui.
A conclusão a que chegaram é que a remuneração acima do teto do funcionalismo público está muito longe de ser exorbitante. Ficou óbvio que a elite do funcionalismo público federal é fácil de ser encontrada, principalmente no Ministério Público da União, Tribunais Regionais e Superior, na Câmara dos Deputados, no Senado, no Tribunal de Contas da União e no Ministério das Relações Exteriores.
Mas muitas dessas funções não estão incluídas na proposta de Reforma Administrativa apresentada pelo governo. Caso o texto seja aprovado como está, ficam de fora promotores, juízes e parlamentares. O texto traz poucas alterações para a carreira militar, mas concede maior flexibilidade para acumulação de cargos. O que nos leva ao questionamento: será que essa reforma realmente foi pensada para combater privilégios?
O QUE ESSA REFORMA QUER?
Fazer uma Reforma Administrativa no Brasil realmente é necessário, contanto que sirva como um instrumento de melhoria de gestão e dos serviços oferecidos à população brasileira.
O que fica evidente na leitura do texto da PEC 32/2020 é a escassez de vezes em que se usa os termos “gestão pública” e “políticas públicas”. Ou seja, essa Reforma pouco tem a ver com a melhoria dos serviços públicos ou com o aumento da eficiência na gestão.
A Reforma, como foi apresentada, busca reduzir o Estado e transformá-lo em coadjuvante no provimento de serviços essenciais à população. Tais serviços (água, luz e saneamento básico, por exemplo) ficarão à mercê do interesse do setor privado.
Temos um caso recente da importância do poder público na garantia de serviços essenciais com a interrupção do fornecimento de energia para o estado do Amapá por vários dias. A situação provocou caos e desespero na população. E isso pode se comum no Brasil, caso a Reforma seja aprovada nesses termos.
Outro registro importante sobre a PEC é que não há estimativa dos cenários do serviço público após a implementação das mudanças propostas. Temas como impactos fiscais ou econômicos, dimensões fundamentais para qualquer mudança no desenho do Estado brasileiro, estão negligenciados no debate público, chamando a atenção para a ausência, mais uma vez, de diagnósticos ou estudos preparatórios.
NOVOS PRINCÍPIOS?
O texto inclui novos princípios (imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade) para o exercício da administração pública. Vale lembrar que princípios similares já existem, o que pode tornar sua interpretação e aplicação mais complexas.
No entanto, o que realmente merece atenção é o último ponto, chamado subsidiariedade, colocando o Estado como mero agente complementar da iniciativa privada. Ou seja, o poder público só poderá agir quando a área em questão não for de interesse do Mercado. Assim, os entes poderão firmar instrumentos de cooperação entre órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares.
Esse último ponto também foi retirado da proposta em sua passagem pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. No entanto, ainda existe o receito de que possa ser retomado conforme a proposta tramita pela Câmara dos Deputados.
COMO FICAM OS CARGOS?
A Reforma visa criar dois tipos de cargos, por tempo indeterminado e cargo típico de Estado:
- Cargo por prazo indeterminado: funções sem direito à estabilidade
→ Seu ingresso se dá por meio de concurso público
→ Estabelece vínculo precário de experiência (no mínimo 1 ano). No final, somente os mais bem avaliados serão efetivados
→ Possibilidade de desligamento (estabelece mais hipóteses legais de desligamento do que as que já existem atualmente (sentença judicial, infração disciplinar, desempenho insuficiente)
- Carreira típica de Estado: funções essenciais e estratégicas (Segurança Pública, Auditor, MP, Advocacia Pública, Magistratura, Diplomacia etc). Essas funções, no entanto, não foram definidas na PEC.
→ Ingresso por concurso público
→ Estabelece período de experiência de, no mínimo, dois anos. Ao final, somente os mais bem avaliados serão efetivados
→ Veda redução de jornada e remuneração para os cargos típicos de Estado
→ Concede estabilidade após três anos (dois anos de experiência + um ano de exercício efetivo)
→ Estabelece a perda do cargo em decisão transitada em julgado ou por órgão judicial colegiado; ou mediante avaliação periódica de desempenho; (Atualmente a Constituição Federal prevê que o servidor público estável perderá o cargo apenas em virtude de sentença judicial transitada em julgado)
O texto também cria duas novas possibilidades de vínculo com ingresso por meio de processo simplificado. São eles:
- Cargo por prazo determinado, contratados para serviços temporários
- Cargo de liderança e assessoramento, destinado às funções estratégicas, gerenciais ou técnicas
QUAL A IMPORTÂNCIA DA ESTABILIDADE?
A estabilidade existe não como privilégio, mas para impedir que cargos (sobretudo técnicos) fiquem à mercê das mudanças dos mandatos políticos e que haja nepotismo. Com o fim da estabilidade e a transferência de funções técnicas e gerenciais a servidores que não são de carreira, as chances de impacto negativo no andamento de processos e serviços é imensa, o que gerará também, é claro, uma perda significativa de qualidade no serviço prestado ao cidadão.
FIM DE BENEFÍCIOS
O serviço público é muito desigual e heterogêneo. Há diferenças entre os Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário e entre entes federados – União, estados e municípios.
A PEC 32/2020 cria algumas regras gerais para “enquadrar” algumas minorias que mantém alguns tipos de benefícios que já foram eliminados para a maioria do serviço público.
Por exemplo, não há férias superiores a 30 dias por ano no Executivo e no Legislativo, mas é a realidade no Poder Judiciário e Ministério Público. O mesmo vale para o adicional por tempo de serviço, criação de parcelas indenizatórias e auxílios retroativos.
A PEC prevê que nenhum servidor poderá ter:
→ férias superiores a 30 dias/ano
→ adicional por tempo de serviço
→ aumentos retroativos
→ licença-prêmio ou qualquer licença decorrente de tempo de serviço, ressalvada a licença capacitação
→ redução de jornada sem redução de remuneração, com exceção de motivos de saúde – não é uma regra geral no serviço público, em geral são resultados de acordos coletivos
→ aposentadoria compulsória como punição – é uma regra válida apenas para o Poder Judiciário e Ministério Público
→ adicional ou indenização por substituição não efetiva
→ progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço
→ parcelas indenizatórias sem previsão legal
→ incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções
*Vale pontuar aqui que o adicional por tempo de serviço e a incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções já estão extintos no governo federal.
QUAIS OS PRÓXIMOS PASSOS DA PEC?
Após passar pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, onde foi analisada sua constitucionalidade, a proposta se encontra em Comissão Especial designada a analisar o seu mérito.
Na Câmara, a PEC precisa de quórum qualificado para sua aprovação, ou seja, no mínimo, 308 votos favoráveis dos 513 deputados, em dois turnos. Depois, o texto segue para o Senado Federal, onde precisará de 49 votos, também em dois turnos. Caso a PEC que saiu da Câmara não tenha sido alterada pelo Senado, o texto é promulgado em sessão no Congresso pelo Presidente da República e entra, então, em vigor. Caso seja alterada, volta para Câmara.
Fonte: Que Estado Queremos?