Por Matheus Falivene
Campo Grande (MS) – No julgamento do HC 399.109/SC, o Superior Tribunal de Justiça, de maneira absolutamente equivocada, decidiu que constitui crime contra a ordem tributária deixar de recolher valor de ICMS declarado ao Fisco, subvertendo entendimento anteriormente majoritário e transformando o Direito Penal num verdadeiro cobrador de impostos, na medida em que passa a se punir o mero inadimplemento, e não a fraude.
O artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90 dispõe que constitui crime contra a ordem tributária deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.
Esse crime é denominado de “apropriação indébita tributária” e, conforme o entendimento majoritário, ocorre quando, nas operações de substituição tributária, o contribuinte direto desconta parte do tributo do contribuinte indireto e o deixa de repassar os valores ao Fisco — isto é, o contribuinte direto se apropria dos valores que lhe foram entregues pelo contribuinte direto.
A doutrina e a jurisprudência majoritárias sempre foram no sentido de que a particularidade dessa norma seria o prévio desconto ou a cobrança de um terceiro do valor, que é posteriormente apropriado pelo autor do crime (por exemplo, IRPF descontado na fonte pelo empregador ou IPI cobrado do consumidor na venda do produto).
Dessa forma, haveria uma fraude ao Fisco, que deixaria de receber o valor do tributo já descontado ou cobrado do contribuinte indireto, como, aliás, era exigido em todos os crimes tributários.
Porém, tal modalidade criminosa nunca foi aplicada às situações referentes ao recolhimento de “tributo próprio”, isto é, naquelas hipóteses em que não há substituição tributária. Nessa situação, há apenas um contribuinte que deve declarar e recolher os valores devidos ao Fisco, sem que haja o “pagamento indireto” por parte de um terceiro.
Esse é o caso do ICMS, onde a cobrança do tributo se dá “por dentro”, na medida em que o vendedor ou prestador de serviços embute no preço da mercadoria ou do serviço o valor do tributo, sendo ele o único contribuinte. Não há substituição tributária, mas uma mera precificação que toma por base o valor dos tributos, o que é absolutamente usual e necessário à atividade comercial.
Nessas hipóteses, o entendimento sempre foi no sentido de que a conduta seria criminosa apenas quando houvesse a efetiva fraude fiscal, isto é, quando o contribuinte deixasse de declarar ou declarasse de forma incorreta o valor com a finalidade de reduzir ou suprimir tributo, o que configura o crime de sonegação fiscal (artigo 1º da Lei 8.137/90).
Assim, o mero não pagamento do tributo devido, desde que devidamente declarado à autoridade fiscal, não configurava crime, pois não haveria a vontade de suprimir ou reduzir tributo, na medida em que os órgãos fazendários poderiam buscar o adimplemento das obrigações pelas vias adequadas, processuais ou extraprocessuais.
Porém, o recente entendimento majoritário do STJ subverte essa ordem e, caso passe a ser aplicado de forma indiscriminada a todos os crimes tributários — o que parece ser uma tendência, conforme se observa de outros julgamentos posteriores no mesmo sentido —, estaremos diante da criminalização do mero inadimplemento tributário, o que não pode ser admitido num Direito Penal que se pretende democrático.
Tal entendimento pode conduzir a uma modalidade de prisão por dívida, já que, como dito, criminaliza o mero inadimplemento, além de tornar ainda mais insegura e custosa a atividade empresarial no Brasil, na medida em que os contribuintes, além de lidar com a esquizofrenia do nosso sistema tributário, agora terão que o fazer sob a ameaça de serem encarcerados ao simplesmente deixar de recolherem tributos declarados.
Além disso, tal entendimento majoritário impacta nas decisões de muitos contribuintes, pessoas físicas ou jurídicas, que, não tendo condição de arcar com o pagamento do tributo devido, terão que optar entre simplesmente não declarar o fato gerador e correr o risco de sofrer as punições tributárias e penais caso “descobertos”, ou declarar e serem penalmente punido pela mera inadimplência.
Em suma, fica claro que ao transmutar o Direito Penal num exator, num verdadeiro cobrador de impostos, traz-se ainda mais insegurança jurídica e torna-se ainda mais difícil a combalida atividade empresarial no Brasil, que se vê cada vez mais acuada por um sistema tributário incompreensível e que agora a ameaça por meio da sanção criminal.
*Matheus Falivene é advogado criminalista e doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP).