Campo Grande (MS) – Está em discussão no Congresso a instituição de uma nova lei geral de licitações e contratos administrativos, em substituição às leis 8.666/1993 (Lei Geral de Licitações), 10.520/2002 (pregão) e 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações – RDC), além da compilação de temas hoje tratados por normas infralegais de forma esparsa.
A proposta de reforma ao regramento intenta a criação de uma única lei contendo as normas gerais de licitações e contratos públicos no âmbito da administração direta e indireta da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, abrangendo também os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, quando do desempenho da função administrativa, bem como os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela administração pública.
De acordo com o que se verifica do PL 6.814/2017, a nova lei regulará a alienação e concessão de direito real de uso de bens; compras, inclusive por encomenda; locações, concessões e permissões de uso de bens públicos; prestação de serviços, incluindo-se os técnico-profissionais especializados; aquisição ou locação de bens e serviços de tecnologia da informação e comunicação; e, obras e serviços de engenharia. Contudo, ficaram de fora da proposta os contratos de operação de crédito e gestão da dívida pública, que abrangem as contratações de agentes financeiros e de concessão de garantia relacionadas a esses contratos, assim como as contratações regidas pela Lei das Empresas Estatais (Lei 13.303/16) e outras contratações específicas sujeitas a normas previstas em legislação própria.
Isso porque, ainda que a Lei Geral de Licitações em vigor estipule regras imprescindíveis para que os administradores públicos efetivem contratações, ela possui diversos elementos que demonstram sinais de obsolescência, em consequência da rapidez da evolução dos meios eletrônicos e da defasagem das premissas e valores consagrados na década de 1990 (por mais que parte destes tenha sofrido recente reajuste por meio do Decreto 9.412/2018, que atualizou os valores que determinam a utilização de três modalidades de licitação — convite, tomada de preços e concorrência).
Assim, o projeto de lei ganhou destaque, especialmente, pela adoção de diretrizes mais modernas e ágeis, primando pela transparência, eficiência e celeridade dos procedimentos licitatórios.
Salienta-se, de plano, a incorporação da inversão das fases de habilitação e julgamento, inicialmente instituída no pregão e seguida também no RDC. Como regra, propôs-se o julgamento das propostas de forma anterior à habilitação, esta segunda fase só sendo realizada em relação ao vencedor do certame. Nota-se, com a proposta, considerável ganho em termos de eficiência e economia processual na condução dos procedimentos licitatórios.
Ademais, denotando claro avanço na vinculação da atividade administrativa a princípios inafastáveis, o PL acrescenta dez destes aos previstos hoje na Lei de Licitações. Além dos atuais princípios da isonomia, legalidade, impessoalidade, moralidade, probidade administrativa, igualdade, publicidade, vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo, o texto inclui expressamente os princípios da eficiência, eficácia, motivação, segurança jurídica, razoabilidade, competitividade, proporcionalidade, celeridade, economicidade e sustentabilidade.
Outro fato que salta aos olhos é a intenção de desburocratizar e simplificar os procedimentos licitatórios, verificável na medida em que: (i) o desatendimento de exigências meramente formais, que não comprometam a qualificação do licitante ou a compreensão da proposta, não mais importará no afastamento do licitante ou invalidação da licitação; (ii) dispensa-se o reconhecimento de firma de documentos, exceto quando houver dúvida real acerca da autenticidade destes; e (iii) prioriza-se a realização dos atos sob forma eletrônica.
Outra novidade trazida pelo PL é a inclusão, como modalidade licitatória, do “diálogo competitivo”, mais conhecido como diálogo concorrencial, aplicável quando da contratação de objetos tecnicamente complexos, onde as empresas privadas (previamente selecionadas) e o poder público desenvolvem, em conjunto, as melhores alternativas para atender as necessidades públicas. Importa mencionar, outrossim, que o RDC e a tomada de preços (escolha do fornecedor a partir de um cadastro prévio) deixam de existir na proposta da nova lei.
Sem embargo, muitas práticas do RDC foram incorporadas no novo texto legal, como a contratação integrada e alguns procedimentos auxiliares adotados neste mecanismo de contratação, quais sejam, pré-qualificação permanente; cadastramento; sistema de registro de preços renovado anualmente; e catálogo eletrônico de padronização.
Ainda na busca por maior eficiência e melhor planejamento para contratações de relevo técnico, a proposta do Senado incorpora o Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI), hoje previsto no Decreto 8.428/15, e permite a realização de contratação semi-integrada, tal qual estabelecido na Lei 13.303/16 (Lei das Empresas Estatais) para obras e serviços de engenharia.
As novidades se estendem também à forma de resolução de possíveis impasses surgidos durante a vigência contratual, na medida em que consta do PL em discussão que os instrumentos de contrato poderão prever meios alternativos de solução de controvérsia, inclusive quanto ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, sendo permitidos para tanto a arbitragem, a mediação, a conciliação e o comitê de resolução de disputas.
Ponto sensível na proposição que merece destaque diz respeito à apresentação de garantias pelos contratados. O PL estabelece que o aporte de garantia poderá ser dispensado excepcionalmente nas hipóteses de compras pronta-entrega. Entretanto, para as demais contratações, o particular deverá fornecer garantia contratual proporcional ao tipo e a complexidade do fornecimento do bem ou do serviço.
Se comparados com a atual Lei de Licitações (Lei 8.666/93), os novos percentuais assecuratórios adotados pelo projeto farão com que os contratantes desembolsem parcelas significativamente maiores, atingindo as garantias o patamar de até 30% do valor contratual inicialmente estipulado nos casos de serviços de engenharia de grande vulto, definidos como aqueles cujo valor estimado seja superior a R$ 100 milhões.
Imperioso consignar, adicionalmente, que, em caso de contratação de obras e serviços de engenharia, o edital poderá prever a obrigação da seguradora de, na hipótese de descumprimento do contrato pelo contratado, sub-rogar-se nos direitos e obrigações do contratado, devendo concluir a execução contratual mediante subcontratação total ou parcial, sob pena de penalização a esta em valor equivalente à garantia apresentada.
Porém, as inovações na seara assecuratória não param por aí. O texto do projeto também prevê a possibilidade de se exigir seguro adicional para assegurar o cumprimento das obrigações trabalhistas pelo contratado (quando os trabalhadores serão beneficiários das apólices). No entanto, o aporte desse tipo de garantia será obrigatório nos casos em que a administração seja tomadora de serviço para a execução indireta de atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem a área de competência do órgão ou entidade contratante.
Noutra senda, comemora-se a inclusão na proposta da possibilidade de ser a própria administração pública a responsável por providenciar o licenciamento ambiental necessário à execução contratual, um dos grandes algozes dos particulares que diuturnamente enfrentam dificuldades nesse sentido, muitas vezes causadas pela morosidade dos órgãos licenciadores.
No âmbito das penalizações, em conclusão, ressalta-se a introdução da figura do denunciante de má-fé para quem altera fatos ou provoca a jurisdição com intuito exclusivamente protelatório, a este imputando-se multa de até 1% do orçamento estimado para a contratação.
Diante de tantas inovações, demonstradas alhures de forma não exaustiva, até pela extensão e nível de detalhamento da proposta, entendemos que o PL atende grande parte das reclamações de especialistas, advogados, empresários e do próprio poder público, denotadas ao longo dos 25 anos de vigência da Lei 8.666/1993 — que tem demonstrado ser incapaz de atender a dinâmica atual da sociedade e as reais necessidades da administração pública.
Não obstante, por mais que o Projeto de Lei 6.814/2017 seja tratado com prioridade, devido ao vulto e importância, a pauta do Poder Legislativo Federal possui diversas incertezas motivadas pela corrida eleitoral de 2018, razão pela qual fica difícil precisar quando se dará a efetiva atualização das normas licitatórias, ainda que a reformulação destas seja imprescindível para que a administração pública possa se reestruturar, viabilizando o aumento da sua eficiência e a redução da insegurança jurídica, criada pela alta complexidade das normas vigentes e a falta de uniformidade na aplicação das leis afetas às licitações e contratos administrativos.
Cristiana Castro é advogada do Leite, Tosto e Barros Advogados, especialista em Direito Público.
Valéria Rosa é advogada do Leite, Tosto e Barros Advogados, especialista em Direito Público.