Bráulio Santiago Cerqueira *
Campo Grande (MS) – Pesquisa de opinião realizada ao final de 2016 indicou, entre os que tinham posição sobre o assunto, que 68% do(a)s brasileiro(a)s rejeitavam a proposta do governo Temer de congelamento real das despesas primárias por 20 anos, enquanto 27% se diziam favoráveis e 5% se mostravam indiferentes (Folha de S.Paulo, 13 de dez. 2016).
Mesmo assim, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional (EC) no 95/2016, reduzindo por lei e pelos próximos cinco governos o tamanho do Estado brasileiro. Em 20 anos, supondo crescimento médio da economia de 2,5% real ao ano (acima da inflação), e considerando a manutenção da regra, o gasto federal com saúde, educação, previdência, assistência, outros investimentos e manutenção da máquina pública passaria de 20% para 12,1% do PIB, uma redução de 40%.
Não há registro no mundo de imposição “por decreto” da diminuição do tamanho do Estado. Também não há exemplo de regra fiscal de limite global de despesa esculpida no topo do aparato legal de um país. A base de dados do Fundo Monetário Internacional relativa à institucionalidade fiscal (FMI, 2017), que contempla 96 países, apontava 45 deles com alguma regra de despesa em 2015, nenhuma fixada constitucionalmente.
Sem paralelo em outras experiências, o teto de gasto primário brasileiro se apoiou em um diagnóstico ideológico da crise fiscal, porque focado exclusivamente em explosão da despesa primária que, na realidade, não houve.
Nos quatro mandatos presidenciais que antecederam a criação do teto, precisamente o último deles, Dilma I, foi marcado pela menor taxa de crescimento médio real das despesas: 3,3% a.a. contra 5,0% de FHC II, 5,9% de Lula I, e 9,7% de Lula II. O que os dados agregados de receita e despesa primária revelam é que a deterioração do resultado fiscal a partir de 2014 reflete, notadamente, a perda de dinamismo e colapso da receita na recessão, e não um descontrole generalizado da despesa.
Já sobre a conta de juros do setor público brasileiro, na comparação internacional uma das mais elevadas, a Exposição de Motivos da EC no 95/2016 silencia. No ano passado, nosso gasto com juros chegou a 6,1% do PIB, contra 1,5% do PIB na média dos países avançados, ou 1,9% do PIB na média dos países emergentes (FMI, 2018).
Outro aspecto singular, e negativo, do nosso teto de gastos é a ausência de cláusulas de escape em situações recessivas. Depois da crise global de 2008, que sobrecarregou as finanças públicas em todo o mundo, o traço marcante da chamada “segunda geração de regras fiscais” foi sua flexibilização, de modo a torna-las mais críveis e adaptadas a situações de baixo crescimento. No Brasil, ao revés, introduziu-se, em plena recessão e sem previsão de excepcionalidades, regra de despesa desconectada da administração do nível de demanda agregada e do próprio crescimento da população e de suas necessidades.
A ausência de excepcionalidades também prejudica a gestão pública e o princípio da universalidade do orçamento. Por exemplo, doações de organismos internacionais para o reflorestamento de Parques Nacionais ou mesmo receitas próprias de instituições públicas de ensino voltadas à expansão de laboratórios, ao esbarrarem nos limites de execução de despesas, terminam por desestimular a busca de fontes alternativas de financiamento e/ou incentivam a criação de mecanismos extraorçamentários menos transparentes de execução do gasto.
Além de tudo isso, a EC no 95/2016 dificilmente será cumprida, a não ser no ponto de partida e por alguns poderes/órgãos. Em 2017, primeiro ano de vigência do teto, por um lado, o Poder Executivo cumpriu a regra sem problemas porque partiu de uma base de pagamentos inflada em 2016 pela execução acelerada de restos a pagar no final do ano; por outro lado, Justiça do Trabalho, Justiça Federal, Ministério Público, Justiça do DF e Territórios e Defensoria Pública da União já estouraram os respectivos limites (nos três primeiros anos a regra permite compensação pelo Executivo).
A correção do limite global de despesas pela inflação passada também facilitou o cumprimento da regra em 2017, uma vez que a inflação verificada no ano, 2,9%, foi menor do que o fator de correção do teto, 7,2%. Isto não deverá ocorrer em 2018 (nem em 2019), quando as expectativas de mercado projetam IPCA de 3,8% (Focus, 8 de junho de 2018) contra fator de correção de 3,0%.
Ou seja, o governo Temer criou uma regra fiscal de fácil alcance para ele mesmo, mas que deverá ser descumprida pelos próximos governos. A probabilidade de descumprimento é estruturalmente elevada pois a regra projeta 12,1% do PIB de despesa em 2036, enquanto em 2015, de acordo com STN, 2016, somente o gasto social direto do Governo Central alcançou 13,2% do PIB.
Isso coloca a EC no 95/2016 em rota de colisão contra o conjunto de direitos previstos na Constituição Federal de 1988, radicalizando a insegurança jurídica e atentando contra o bem-estar da população. Já ocorre e será mantida pressão permanente por desvinculação do salário mínimo da previdência, por rebaixamento de pensões, fechamento de universidades públicas, precarização do SUS, extinção de órgãos, contenção do investimento público, congelamento nominal dos salários nos três poderes, flexibilização da estabilidade do servidor, postergação indefinida de novos concursos, etc.
Os conflitos entre teto de gastos federal e, de outro lado, regulação do ciclo econômico, gestão pública eficiente e transparente, e preservação/construção de direitos sociais se aprofundarão rapidamente. O próximo governo, seja de que ideologia for, iniciará com raio de manobra orçamentário muito curto ou nulo, mesmo se a receita voltar a crescer. Caberá aos novos representantes eleitos, e quem sabe desta vez à população brasileira, insistir com o impossível ou propor a revogação da EC no 95/2016.
Referências
FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL (FMI, 2017) Fiscal Rules Dataset. IMF Fiscal Affairs Department. Washington: IMF, mar. 2017.
____. (FMI, 2018) Fiscal Monitor: capitalizing on good times. Washington: IMF, abr. 2018.
SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL (STN) Gasto social do Governo Central: 2002 a 2015. Brasília: STN, 2016.
* Mestre em Economia, Auditor Federal de Finanças e Controle, Secretário Executivo do Unacon Sindical