Rodrigo Spada
Presidente da Febrafite (Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais), entidade que representa mais de 30 mil auditores fiscais, e da Afresp (Associação dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo)
A proposta de reforma administrativa que o governo federal apresentou nos parece muito mais um roteiro de viagem para Pasárgada —o reino imaginário retratado por Manuel Bandeira em 1930 e que era o paraíso para os amigos do rei. Muito mais do que dificultar a estabilidade no serviço público, o texto busca facilitar a contratação de empresas particulares para a prestação de serviços públicos e, por conseguinte, remunerar a iniciativa privada. Inúmeras vulnerabilidad es e ameaças seriam criadas. A mais perigosa delas é a de que o Tesouro Nacional seja dilapidado por amigos do soberano que detiver o mandato.
Dois dos pontos apresentados pelo Ministério da Economia devem ser objetos de muita preocupação e avaliação, pois colocam em risco o futuro do serviço público no país: o fim do regime jurídico único dos servidores públicos e o fim da estabilidade dos novos servidores.
O fim do regime jurídico único permitiria a contratação de mão de obra privada no serviço público. Representaria o renascimento do apadrinhamento político e a possibilidade de direcionamento comercial-ideológico nas contratações, ou seja, com funcionários públicos indicados ou contratados segundo a vontade e o interesse dos governantes de plantão. Poderemos nos deparar com verdadeiro aparelhamento privado do Estado.
Aprovar tal matéria seria descabido retrocesso. Seria voltar ao tempo do clientelismo no qual o poema foi publicado. O Estado precisa ser permanente e, para isso, seus servidores precisam de estabilidade. Governos passam, e os servidores efetivos atravessam tais governos detendo o conhecimento e protegendo os interesses gerais com responsabilidade e proteção institucional.
Somente a estabilidade protege a sociedade e o Estado contra o aparelhamento da máquina estatal com cabos eleitorais obedientes e temerosos por perderem o emprego. Por óbvio que seja, precisamos falar da perda de qualificação dos quadros do funcionalismo, o que seria inevitável.
O modelo previsto no artigo 37 da proposta é tanto fadado ao equívoco quanto é susceptível às piores práticas de gestão pública. As brechas que abriria para a corrupção, ao promover relação incestuosa entre os setores público e privado, seriam extremamente perniciosas para os dois setores ao contaminar o ambiente e a prática concorrencial nos negócios com o governo.
Servidores não possuem cargo vitalício. Apenas entre os anos 2015 e 2019, 8.000 servidores federais foram demitidos. A proposta apresentada fragilizaria a prestação dos serviços públicos à sociedade e provocaria a precarização de atividades essenciais e, portanto, contrariaria o disposto na Constituição de 1988.
Ao dizerem que para o Brasil sair da crise fiscal precisaria aprovar a reforma administrativa proposta pelo governo federal, repetem o mesmo discurso de ódio, de desinformação e de notícias falsas espalhados para viabilizarem a reforma da Previdência e a trabalhista. Afinal, antes da pandemia o dólar já estava acima de R$ 5, o desemprego alcançava níveis recordes e não se conseguia projetar crescimento consistente no PIB brasileiro. O Congresso Nacional deveria aprovar a exoneração de ministros por desempenho insuficiente.
Crescimento de empregos e desenvolvimento econômico tem na segurança jurídica para os servidores públicos uma condição necessária. Somente investimentos na qualificação dos profissionais, na retenção dos talentos, no combate à corrupção, somados à necessária reforma do sistema tributário injusto, poderão promover um país forte.
A estabilidade no emprego público foi criada menos para proteger o servidor e muito mais para garantir a sociedade e o Estado contra governantes corruptos e contra funcionários públicos que não teriam nada a perder.
É do interesse de toda a sociedade que se busque as melhores pessoas e os melhores profissionais para o serviço público. Essa reforma desmotiva o ingresso no serviço público brasileiro e acena sedutoramente aos amigos do rei.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo na sexta, dia 4. Clique aqui para acessar!