Limite de gastos, gatilhos e arrecadação: como os países as contas

Publicado em: 29 maio 2023

Campo Grande (MS) – Mecanismos para controle de gastos podem parecer naturais nas economias contemporâneas. Na semana passada, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou a proposta da nova regra fiscal que deve substituir o teto de gastos, implementado durante o governo do ex-presidente Michel Temer.

Apesar de parecer recente, a inclusão de regras para a manutenção e controle do equilíbrio orçamentário nas cartas constitucionais data desde meados do século XIX.

No entanto, as últimas décadas foram marcadas por avanços significativos para esta área. Desde 1980 que não apenas diversificaram-se os mecanismos institucionais de controle das despesas governamentais, mas também se multiplicaram os países adeptos dessas regras fiscais.

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Segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), em 1990 apenas sete de seus 190 membros adotavam algum tipo de regra fiscal. Hoje, de acordo com a última atualização do órgão, em 2021, são 106 nações, um número que deve continuar subindo.

“As regras existem para controlar o viés deficitário dos governos. Todos eles têm um viés deficitário, pois qualquer governo mais liberal ou mais à esquerda, tem uma tendência sempre a gastar. Qualquer política pública que precisa ser feita, precisa ser financiada de alguma maneira e isso vai envolver algum gasto”, explica Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos.

A importância desse tipo de mecanismo se dá por estabelecer o controle da dívida pública, uma vez que, um descontrole da mesma pode comprometer a capacidade do governo para colocar em prática investimentos e programas sociais.

Ele também proporciona um controle da inflação ao colocar limites para que o governo não gaste em excesso, evitando pressões sobre os preços.

Um arcabouço também é importante para a redução de juros, ponto defendido por muitos economistas e reconhecido pelo Banco Central (BC). Uma regra crível e que controle o crescimento das despesas melhora o ambiente e auxilia o BC em sua política monetária.

Regras fiscais estimulam ainda o crescimento econômico e os investimentos, uma vez que traz previsibilidade para as contas públicas e torna transparente a trajetória de endividamento do governo.

Os tipos de regras

O Fundo Monetário Internacional (FMI) identifica 4 tipos de regras fiscais, são elas: regra de dívida, de gasto, de receita e de resultado orçamentário. Segundo os dados da instituição, grande parte dos países utiliza duas ou três delas simultaneamente.

Para avaliar cada uma delas, foram utilizados materiais disponibilizados pelo economista-chefe da Warren, Felipe Salto, e pelo pesquisador do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da USP, Pedro Romero Marques.

Regra de dívida

A regra de dívida (DR, na sigla em inglês) limita o tamanho dos débitos do país. Normalmente, os países estabelecem este princípio através de uma porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB). Por exemplo, definir que o limite para o endividamento público de um país será de 60% do PIB.

O principal objetivo desta regra é o de garantir uma trajetória de sustentabilidade para o endividamento. Ela oferece ainda um mecanismo considerado simples e de fácil comunicação.

Contudo, esse tipo de regra dá pouca margem operacional no curto prazo, além de ser variável, ou seja, está sujeita a diversos fatores fora do controle do governo. Ela também pode estimular uma política fiscal pró-cíclica e buscar por receitas extraordinárias.

Regra de gastos

Já a regra de gastos — ou despesas — (ER, na sigla em inglês) limitam o montante que o governo poderá gastar ao todo, ao invés de regular a quantia que ele pode pegar emprestado.

Esses limites, por sua vez, podem ser determinados em termos de despesas nominais, reais ou levando em consideração os gastos públicos como proporção do PIB.

Por um lado, a regra de gastos possui a vantagem de uma diretriz operacional clara e também uma simplicidade e transparência, o que favorece a comunicação por parte do governo e seu monitoramento. Além disso, também controla o tamanho governo e possui propriedades anticíclicas.

Por outro, ela não tem ligação direta com a sustentabilidade da dívida e pode afetar negativamente a qualidade dos gastos.

Regra de receita

As regras de receita (RR, na sigla em inglês), servem para quando um país obtém superávit, ou seja, quando entra mais dinheiro do que era esperado. Mas ela também pode servir para impedir a captação excessiva de recursos.

As vantagens deste tipo de regra estão em ajudar a definir o tamanho do governo e na capacidade que ele possui de estimular políticas tributárias melhores.

Já as desvantagens são a fraca ligação com a sustentabilidade da dívida e possuir variável sujeita a fatores fora do controle do governo.

Regra de resultado orçamentário

A regra de resultado orçamentário (BBR, na sigla em inglês) pode assumir diferentes formas.

Ela pode exigir um equilíbrio orçamentário anual, impor um limite máximo para o déficit ou requerer um nível mínimo para o superávit (por exemplo: eventuais déficits não podem ultrapassar 3% do PIB).

Assim como a regra de dívida, a regra de resultado orçamentário pode ter efeito pró-cíclico quando não diferencia o contexto econômico no qual a meta fiscal (superávit ou déficit) será perseguida.

O efeito pró-cíclico é considerado um fator negativo para a regra, assim como a busca por receitas extraordinárias e estar sujeita a fatores que fogem do controle do governo.

Como pontos positivos, destaca-se a ligação mais próxima com a sustentabilidade de dívida, uma diretriz operacional clara e sua simplicidade e transparência.

Debate

O debate em torno das normas fiscais sempre será recorrente, segundo os especialistas, uma vez que não existe uma solução que dê conta de todas as mudanças e complexidades da realidade de um país.

“As regras foram sendo sofisticadas porque foi vendo ao longo do tempo que não existe uma regra perfeita. Na verdade é uma combinação de instrumentos que podem ou não levar a um comportamento fiscalmente responsável permanentemente”, considera Felipe Salto.

Durante a pandemia de Covid-19, por exemplo, muitos países suspenderam ou modificaram suas regras fiscais para arcar com os custos sociais e sanitários da crise.

Com a reabertura econômica, os governos passaram a ter que lidar com uma conjuntura significativamente distinta: os níveis de endividamento público atingiram novos recordes, as taxas de crescimento econômico se mantiveram aquém do esperado e, após décadas, ressurgiram pressões inflacionárias persistentes.

E o Brasil não escapou desse contexto. A regra em vigor no país até então era o teto de gastos, aprovado em dezembro de 2016, durante a gestão do ex-presidente Michel Temer (MDB).

Baseado na regra de gastos, o teto criou um limite de crescimento para o orçamento da União. Ou seja, o total a ser gasto pelo governo e órgãos ligados a ele a cada ano só poderia aumentar o equivalente à inflação do ano anterior. A regra tinha validade de 20 anos, podendo ser revista a partir do 10º ano, isto é, em 2027.

Na prática, o mecanismo congela os gastos em termos reais por esses 20 anos – como o crescimento é limitado à inflação, ele apenas recompõe os aumentos de preços, mas não muda a quantidade total de bens e serviços pagos.

A pandemia trouxe justamente a necessidade de expandir gastos para compor programas de auxílio à população mais vulnerável e às pequenas empresas. Durante este período, para poder aumentar os gastos, o governo aprovou a Pec Emergencial.

Além desta, outras três propostas na mesma linha foram aprovadas, a Pec dos Precatórios, a Pec dos Benefícios e a Pec da Transição.

Para Pedro Marques, momentos como o vivido durante a pandemia reforçam a necessidade de revisão de regras fiscais e que, portanto, elas são fruto de seu tempo.

Após todas essas manobras para alterar a Constituição e aumentar o volume de gastos, tornou-se consenso no debate público que o teto de gastos, na prática, não exercia mais sua função.

Logo, era necessário um novo modelo para trazer novamente uma credibilidade e previsibilidade para as contas. Para o novo governo, também era a oportunidade de adequar uma nova regra à agenda da nova gestão, que prioriza pautas sociais e maior protagonismo do estado através de investimentos para promover o crescimento econômico.

Para o coordenador do Centro de Macroeconomia Aplicada (Cemap) da EESP-FGV Emerson Marçal o novo marco fiscal apresentado pelo governo estabelece muitas exceções e não prevê uma punição legal para o não cumprimentos das metas definidas.

“O arcabouço tem uma regra um pouco mais frouxa do que deveria ser. O que chama a atenção é você propor alterações de mecanismos importantes de controle do gasto publico. E se o governo não cumprir a meta, o máximo que vai acontecer é o presidente escrever uma carta ao Congresso (…) Acredito que tenham exceções demais. O aporte de estatal está fora do orçamento, que também é algo que preocupa”, pondera Marçal.

Pedro Marques, por outro lado, considera que o novo marco é interessante e cumpre características de praticas internacionais de garantir certa flexibilidade do gasto público e sustentabilidade dos gastos sociais.

“É importante instituir algo que seja crível e retomar o papel do investimento público para o Brasil que foi uma das rubricas mais prejudicadas nos últimos anos”. Ele também considera errado criminalizar gastos públicos, assim como também o Banco Central (BC) não é criminalizado quando não entrega as metas de inflação.

Agora com o texto no Congresso, começam as discussões e mudanças até a votação. Assim como aqui, muitos países emergentes seguem alguma dessas regras para controlar os gastos públicos e a tendência deficitária do estado.

Brics e América Latina

É importante destacar que é comum o uso de uma ou mais regras pelos diferentes países. Exemplos de nações que utilizem apenas uma regra fiscal são raros.

A Austrália, por exemplo, adota as quatro regras, combinando-as dentro de seu arcabouço fiscal. Já a Suécia, opta por seguir três delas, exceto a regra de receita, assim como a União Europeia.

Alguns membros do grupo de países emergentes, os Brics, formado por Brasil, Rússia, China e África do Sul também possuem uma ou mais de uma das regras reconhecidas pelo FMI.

Segundo o Fundo, a Rússia adota dois tipos de regras, a de resultado orçamentário e a regra de gastos. O país eslavo adotou os mecanismos recentemente, em 2013.

Os indianos, por sua vez, trabalham o orçamento também utilizando duas regras, uma de resultado orçamentário e outra de dívida. O regramento do país também é recente, tendo sido empregado em 2012. Por outro lado, no grupo dos países, China e África do Sul não possuem regras fiscais, segundo o FMI.

Outras economias semelhantes ao Brasil e, sendo próximas geograficamente, são Colômbia, Argentina e México. No caso da primeira, o modelo adotado combina a regra de gastos com a de resultado orçamentário.

Já a Argentina possui uma apenas a regra de gastos como mecanismo. Enquanto o México adota dois modelos, o da regra de gastos e o de resultado orçamentário.

Um artigo publicado pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades ao analisar as taxas de cumprimento (ou desvio) das regras fiscais para 14 países latino-americanos entre 2000 e 2020, constatou que a regra de gastos obteve o menor índice de cumprimento, com 41%.

Já a regra de saldo estrutural possui a maior taxa de cumprimento para a amostra, atingindo 79%, enquanto as de dívida, de saldo fiscal apresentaram
índices de 75% e 69%, respectivamente.

“No caso da América Latina, tivemos uma série de fatores que beneficiaram o crescimento e distribuição de renda nos anos 2000. O boom de commodities é um exemplo disso. O que acontece é que quando este fenômeno acaba, existe um demanda que vem de fora para dentro. Isso reflete na quantidade de dinheiro em tributos e portanto na capacidade de países de cumprir com as regras com gastos mantidos, mas arrecadação caindo”, explica Pedro Romero Marques.

O novo marco brasileiro

A nova regra fiscal prevê que — para os exercícios de 2024 a 2027 — os gastos do governo não podem ter crescimento acima de 70% do crescimento da receita.

Em momentos de avanço excepcional da arrecadação, porém, a despesa primária não poderá ter crescimento acima de 2,5% ao ano. Caso haja retração extraordinária, a despesa primária adotará outro gatilho e não poderá crescer mais que 0,6% ao ano.

O plano ainda estabelece metas de superávit primário. A ideia é de que o governo tenha déficit primário zero em 2024, superávit de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2025 e de 1% em 2026.

Se a meta de superávit primário não for atingida e o resultado ficar fora da variação tolerável, haverá obrigação de redução do crescimento de despesas para 50% do crescimento da receita no ano seguinte.

Fonte: CNN Brasil

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