Campo Grande (MS) – Logo após a venda do controle acionário da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), foi noticiado que diversas empresas que haviam fornecido bens e serviços àquele estado buscaram receber valores que estavam em atraso e foram informadas que seus créditos haviam sido cancelados. Consta da notícia que, fruto da privatização, cerca de R$ 14 bilhões vão para o estado e R$ 8 bilhões para as diversas prefeituras envolvidas, além de um saldo para o fundo metropolitano. Porém, essas empresas nada receberão, pois o estado do Rio de Janeiro cancelou R$ 3,3 bilhões e a prefeitura da capital cancelou entre R$ 4 e 5 bilhões em restos a pagar.
Tentando entender o que havia ocorrido, me deparei com duas normas bastante curiosas. Primeira: o artigo 8º do Decreto estadual nº 47.341/20, que determina: “Ficam cancelados, em 31 de dezembro de 2020, os restos a pagar processados relativos ao exercício de 2015, decorrentes de despesa com fornecimento de material, execução de obras ou prestação de serviços, com fundamento no §1°, do artigo 134, da Lei Estadual n° 287/79”. A segunda é a norma citada que fundamenta tal cancelamento: “Constituem restos a pagar: I — A despesa com fornecimento de material, execução de obras ou prestação de serviços legalmente empenhada e não paga dentro do exercício, a qual será relacionada em conta nominal do credor;§1º — Os restos a pagar mencionados no item 1 deste artigo terão a vigência de cinco exercícios, a contar do exercício seguinte àquele a que se referir o crédito”.
É possível estabelecer prazo de vigência para os restos a pagar? Ou estamos diante a uma espécie de calote institucionalizado?
Para compreender essa sistemática é necessário analisar os mecanismos financeiros pós-licitação. Uma vez vencida a licitação, pode-se formalizar ou não um contrato, porém é imprescindível que haja empenho, que se constitui no ato administrativo que cria para o estado obrigação de pagamento, pendente ou não de implemento de condição (artigo 58, Lei 4.320/64). O empenho, portanto, reserva valor no orçamento para aquela contratação, servindo como uma garantia do fornecedor de bens e serviços de que há dinheiro disponível para seu pagamento.
Só após a liquidação é que surge para o fornecedor o direito a receber tais valores. Liquidação é o termo técnico que define que o objeto contratado foi cumprido, e cria para o fornecedor o direito adquirido a receber o que lhe é devido (artigo 63, Lei 4.320/64), tornando-o, na prática, um credor do estado.
Como a execução orçamentária é anual, quando se chega a 31 de dezembro verifica-se que nem todos os contratos foram finalizados, devendo os compromissos de pagamento serem inscritos sob uma rubrica com o significativo nome de restos a pagar (artigo 36, Lei 4.320/64), que se divide entre despesas processadas e não processadas.
O restos a pagar referente às despesas processadas corresponde àqueles valores que, além de terem sido empenhados, foram liquidados, embora ainda não pagos. Esta situação já dá ao credor o direito adquirido a receber o valor correspondente, que já havia sido reservado pelo empenho, e que só não foi pago em razão da virada do ano orçamentário. O direito ao recebimento é liquido e certo, independentemente de ingressar em juízo e independente do sistema de precatórios (ver aqui).
Situação diversa ocorre com o restos a pagar referente às despesas não processadas, pois estas foram empenhadas, mas ainda não foram liquidadas. Aqui não há direito adquirido do fornecedor a receber o valor, pois pode acontecer de a liquidação vir a não ocorrer. Algumas hipóteses: o bem adquirido foi entregue com defeito ou em desconformidade com a previsão contratual; ou a empresa simplesmente não o entregou; ou diversas outras possibilidades que inviabilizam a liquidação por parte do poder público.
Logo, voltando ao caso concreto, só se pode compreender a determinação do §1° do artigo 134 da Lei fluminense n° 287/79 com relação ao restos a pagar não processados, pois, nesses casos, a liquidação não terá ocorrido. Não se pode compreendê-lo com referência aos restos a pagar processados, pois, neste caso, já há liquidação, e o correspondente direito adquirido do fornecedor/credor a receber o valor contratado.
Tal distinção não foi feita pelo artigo 8º do Decreto fluminense nº 47.341/20, que determinou o cancelamento dos restos a pagar processados, isto é, dos liquidados, nos quais existe o direito adquirido do fornecedor/credor a receber o valor contratado. É bem verdade que a norma legal estadual não é clara, pois se refere à despesa “legalmente empenhada e não paga dentro do exercício”, sem distinguir entre as processadas e as não processadas no âmbito do restos a pagar. E o decreto, como um trator, passou sobre tal distinção. Trata-se, pois, de um calote institucionalizado.
No âmbito federal essa matéria é regulada pelo Decreto 93.872/86, em especial no artigo 68, o qual cria uma espécie de bloqueio dos valores empenhados e não liquidados, até que ocorra sua efetiva liquidação, estabelecendo prazos e procedimentos para que ocorra a liquidação e, em não ocorrendo, sejam, então, cancelados os empenhos. Essa hipótese está correta, pois não se pode aguardar ad eternum que a liquidação seja efetivada.
Regis de Oliveira, em sua festejada obra “Curso de Direito Financeiro” (item 22.12.6), comenta que esse mau procedimento financeiro é muito usual em diversas prefeituras, que usualmente cancelam empenhos referentes a despesas já liquidadas, porém não pagas, tecendo fortes críticas a tais condutas. Trata-se da violação da boa-fé que deve regular as relações contratuais, inclusive com o agravante, no âmbito das relações com o poder público, da violação do princípio da confiança recíproca, que vige inclusive entre os cidadãos e os governos.
Tais críticas devem ser dirigidas ao governo fluminense e à prefeitura carioca, à luz da notícia referida, pois não se justifica esse calote institucionalizado, que só majora o custo Brasil no fornecimento de bens e serviços ao poder público.
Tais condutas dão margem a muitas irregularidades, que descambam para a página policial dos jornais. É necessário coibir tais procedimentos, inclusive para fins da higidez do sistema de compliance e governança pública.
Em suma, pergunto ao caro leitor: qual preço você usaria caso entrasse em uma licitação para fornecer bens e serviços a um estado que se comporta dessa forma? O preço usual de balcão ou um preço diversas vezes majorado, já contando com a hipótese de um calote, tal como esse?
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.