Campo Grande (MS) – Lá no primeiro mandato do governo Lula, em 2004, foi criada uma tabelinha para as mordidas dadas pelo Leão nos rendimentos de aplicações de renda fixa, incluindo os papéis que financiam o governo federal. A artimanha tinha o objetivo declarado de incentivar os brasileiros a fazer seu pé de meia pensando no futuro. E, de lambuja, alongar o prazo médio da dívida pública. Como? Cobrando mais impostos nos investimentos de curto prazo, e menos nos de longo. E esse é um dos pontos que se pretende jogar por terra na reforma tributária proposta pelo governo Bolsonaro e que deve ser mantido no texto final.
Entre as várias mudanças pretendidas, essa reflete bem como mexer com imposto é um negócio complicado. Na teoria, basta definir quais serão as fontes e os modos de cobrança e, voilà, está feito o sistema tributário ideal. O problema mora na prática. Isso porque, conforme já mostramos aqui no Valor Investe, as pessoas reagem a incentivos. Fator do qual se pode tentar tirar proveito, mas que também serve de armadilha se ignorado. Seja do ponto de vista do investidor, seja do ponto de vista da economia como um todo.Para recapitular, os dados do Tesouro Nacional mostram que a parcela da dívida pública que vencia em até dois anos superava os 55% ainda no fim de 2006, com cerca de um terço com prazo inferior a 12 meses, o que era um peso relevante para a rolagem do endividamento de um país que, na época, não contava tampouco com as reservas internacionais que possui hoje. Por isso, qualquer ajuda para alongar o prazo médio da dívida, como a tabela regressiva de IR para aplicações em renda fixa que foi criada em 2014 (ver na tabela), era de bom grado.
É verdade que, nesses 18 anos desde a criação da tabela, a desconfiança de que o governo federal será capaz de pagar a suas contas no futuro foi caindo de maneira sensível.E essa sensação cadente de calote à vista, por si só, ajudou a mudar o perfil da dívida pública. A proporção dos títulos com vencimento em até dois anos chegou a cair para 32% no fim de 2017 , antes de voltar a subir especialmente de 2019 pra cá.
Embora haja muitos fatores envolvidos num movimento como esse, não dá para desprezar o empurrãozinho a mais dado também pelo escalonamento de impostos em vigor ao longo desses anos, diz a advogada tributária Ana Claudia Utumi, sócia-fundadora da Utumi advogados. E ainda que seja meritória a alegação do governo de que a unificação da alíquota em 15% vai facilitar a vida dos brasileiros, as consequências podem aparecer. Para as pessoas, quando elas precisarem de um dinheiro que acabou por não ser poupado ao longo dos anos. E, para o governo, com uma restrição a menos para os agentes de mercado encurtarem o prazo médio de suas carteiras de investimento em caso de um momento de estresse no mercado — lembrando que hoje fundos de investimento que se enquadram como de longo prazo para fins tributários não podem ter prazo médio de seus ativos na carteira inferior a dois anos.
“Até antes da crise, em que as famílias de classe média precisaram consumir até o osso a poupança feita ao longo dos anos, o escalonamento era um incentivo importante, que vinha forçando famílias a segurarem por mais tempo a ânsia de resgatar seus investimentos“, diz Utumi. “É o que mostra a evolução da dívida pública que, financiada pela poupança nacional, vai se tornando gigantesca.”
A favor do “rentismo”?
A unificação proposta pelo governo tem a pretensão de ser socialmente justa. Nesta crise, justamente as famílias com renda relativamente menor foram mais penalizadas por tributos ao resgatar aportes em curto espaço de tempo. Ao contrário das famílias mais ricas, que seguem lá com seus investimentos a perder de vista.
Mas o diabo mora nos detalhes. Uma pandemia não acontece toda hora. E a poupança queimada por força da crise já foi para o beleléu. É de se supor que o governo pretenda encontrar meios de fazer a renda nacional crescer a partir de agora, diminuindo a proporção crescente da pobreza. Sendo assim, não seria necessário buscar meios de não penalizar resgates de curto prazo. E seriam bem-vindo manter o incentivo tributário à reconstrução da poupança dessas famílias.
Utumi relembra que o escalonamento das alíquotas pretendia desincentivar ainda o “rentismo”. Ou seja, aportes feitos sem a potencial consequência de turbinar o setor produtivo.
Isso porque, antes do escalonamento feito em 2004, a alíquota da renda fixa era de 20% para qualquer prazo, enquanto a da renda variável já era de 15%, como é hoje. A ideia na época, então, foi colocar as duas opções em pé de igualdade tributária. Mas só para quem fizesse resgates depois de 24 meses ou investisse em papéis ou fundos com prazo acima dessa marca. Caso contrário, teria um pedágio jogando ainda mais contra o “rentismo”, na forma de 22,5% de imposto.
“Muito embora a questão da tabela regressiva possa ter demonstrado a sua inconveniência na crise, a crise vai passar. E a mudança proposta passa uma mensagem muito ruim“, diz. “Neste momento, o Brasil precisa é de gente acreditando na produção nacional, investindo nas empresas, e não sendo incentivadas a buscar a renda fixa em detrimento das opções que tem potencial de ajudar o Brasil na retomada.”
A recente queda de juros até os 2% ao ano de Selic de até outro dia, como tem lembrado sempre o ministro Paulo Guedes, também colaborava para o fim desse foco no ganho fácil no curto prazo. Com a mixaria paga pela renda fixa, milhões de novos investidores foram empurrados a se arriscar mais, deixando de ganhar dinheiro fácil. Mas a decisão de unificar as coisas joga contra essa retórica.
Em maio do ano passado, Guedes versava sobre como a reconfiguração de impostos, ao lado da queda de juros, era a saída para a retomada. “Vai ser um inferno para os rentistas e vai ser um paraíso para os empreendedores”, dizia. Só que nada como um dia depois do outro. E não bastassem os juros agora subindo, sabe-se lá até onde, a proposta de reforma desincentivar a exposição ao sobe e desce do mercado de renda variável.
Mas há, claro, quem minimize esses possíveis efeitos da mudança tributária.
“Com experiência de mais de 30 anos, não acho que vá ser isso que vai levar nem investidores a procurar mais pelo curto prazo, nem impactar no perfil da dívida federal“, diz o estrategista-chefe da Ativa Investimentos, Luiz Fernanda Carvalho. “A formação do preço dos ativos tem a ver com a relação entre riscos e retornos oferecidos serem ou não vantajosos, e não diferenciais tributários. Então, acho positivo simplificar.“
Já Alexandre Espirito Santo, economista-chefe da Órama e professor do IBMEC-RJ entende que, sim, a unificação tributária na renda fixa pode até servir de empurrãozinho a mais ao “rentismo” de curto prazo. Sobretudo em momentos de nervosismo no mercado, em que os riscos já dão um baita empurrão a essa tendência. Mas os impactos no encurtamento ou não da dívida federal seriam, entende, marginais.
“O que pode ocorrer é que nos estresses, onde a tendência já é de encurtamento do perfil da dívida federal, os grandes investidores se sintam ainda menos desconfortáveis de migrarem para o curto prazo, mas em condições normais não vejo grandes efeitos na unificação dos impostos”, diz. “Os pequenos investidores no Brasil já são mais imediatistas por natureza, por falta da educação financeira, enquanto os grandes tomadores de dívida olham mais o rendimento oferecido, normalmente maior no longo prazo.”
Para Alvaro Bandeira, economista-chefe do banco Modalmais, o efeito da unificação pode ser, sim, o de incentivar o privilégio pelo curto prazo… mas também pode ser que não. A coisa não é preto no branco, diz ele.
“Em tese, sim, mas tudo depende do comportamento das taxas de juros do longo prazo“, diz. “Se ficarem mais atraentes quanto as expectativas de ganhos, isso pode não acontecer. Mas, certamente, se fosse diminui uma tributação de 22,5% para 15%, você estimula aportes de curto prazo e, consequentemente, torna mais difícil para o governo girar a dívida no longo prazo. Mas, por outro lado, o efeito pode ser mitigado por uma inclinação maior da curva de juros em função da expectativa inflacionária ao longo dos anos.”
Como se vê, não há opinião totalmente formada entre quem lida com o tema no dia a dia. O que faz valer a máxima de que não existe solução fácil para problema difícil. Ainda mais em se tratando de impostos, que mexem com incentivos de toda a sorte. A nós, resta torcer para que, no puxa daqui, puxa de lá do Congresso, a emenda pretendida pela reforma não saia pior que o soneto. Ainda que as intenções sejam boas, como se sabe, está cheio delas onde ninguém deseja passar a eternidade.
Fonte: Valor Investe