*Por Antonio Carlos Vasconcellos Nóbrega
Campo Grande (MS) – Em janeiro, foi dada ampla divulgação ao número de 183 processos abertos por órgãos e entidades federais contra pessoas jurídicas possivelmente envolvidas em esquemas de corrupção[1], com destaque para o registro de 153 procedimentos administrativos iniciados somente em 2017. No mesmo mês, foi noticiado que 506 servidores públicos federais teriam sido demitidos no ano passado[2], sendo que, desse total, 335 teriam sido expulsos em razão de irregularidades mais graves, tais como o recebimento de propina.
O destaque dado a esses fatos e números justifica uma reflexão, que tanto é cabível quanto oportuna. E isso porque a responsabilização administrativa de agentes públicos corrompidos, e de agentes privados corruptores, deve ser vista como resultado imediato e concreto de um esforço nacional de enfrentamento à corrupção.
O Brasil vive um momento único, em que as ações dos órgãos de controle no combate ao crime que se organizou para vitimar o Estado vem despertando a atenção da sociedade, com intensidade e forma inteiramente inéditas, em razão, notadamente, dos desdobramentos da operação “lava jato”.
Tal cenário é positivo na medida em que a percepção dos prejuízos advindos de práticas patrimonialistas e da busca pela obtenção de vantagens privadas em detrimento do interesse público cria um ambiente favorável a mudanças. Esse clamor e exigência da opinião pública ajudam a impulsionar as estruturas sociais no sentido de uma reclamada mudança de práticas que favoreçam o surgimento de um ambiente negocial íntegro e probo, especialmente na relação público-privada. E é nesse sentido e via de consequência que o destaque dado ao enfrentamento da corrupção, pelas entidades públicas, vem alcançando patamares inéditos na história nacional.
O Brasil está pronto para caminhar no sentido de uma substancial alteração em alicerces estruturantes em nossa sociedade. A trajetória a ser percorrida para a formação de um quadro novo de vida nacional, permeado por princípios éticos, passa, necessariamente, pelo combate à corrupção.
Neste passo, apesar de, no plano individual, ser de amplo conhecimento a previsão e possibilidade legal para responsabilização criminal das pessoas físicas envolvidas em atos de corrupção, a possibilidade de se estender a aplicação de sanções às pessoas jurídicas que participaram desses ilícitos somente ganhou força com o advento da Lei 12.846/13, conhecida como Lei Anticorrupção ou Lei da Empresa Limpa.
Publicada em 1º de agosto de 2013, a lei teve início de vigência em janeiro de 2014. Passados cinco anos de seu advento, já é possível fazer um balanço de seus impactos nos setores público e privado, bem como no cenário nacional de enfrentamento à corrupção.
Inicialmente, releva destacar que, mesmo antes de sua vigência, já era possível a responsabilização de empresas que se envolvessem em determinadas irregularidades. Todavia, as sanções previstas eram limitadas, em regra, à impossibilidade de a empresa envolvida ou beneficiada por ato de corrupção licitar e contratar com a administração – tal como previsto na Lei 8.666/93 (Lei de Licitações) e na Lei 10.520/02 (Lei do Pregão) – ou dependiam da existência de elementos atinentes à culpabilidade dos agentes privados envolvidos e à participação de agentes públicos, como ocorre na Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa).
A Lei 12.846/13 foi além e passou a prever a possibilidade de se proceder à aferição da responsabilidade da pessoa jurídica de modo mais amplo em casos de corrupção, com extenso alcance subjetivo e amplos tipos normativos. Ademais, a Lei Anticorrupção encontra-se lastreada na modalidade de responsabilização objetiva dos envolvidos e tem alcance e aplicação por parte de todos os entes federados. Releva destacar, entretanto, que a Lei Anticorrupção não optou pela responsabilização criminal de pessoas jurídicas, tal como ocorre na Lei 9.605/98, que dispõe sobre os ilícitos ambientais. Manteve-se nos limites da responsabilização administrativa e cível das pessoas jurídicas.
E este é o campo de atuação e responsabilização, na esfera administrativa, que a lei atribui às unidades responsáveis pela condução de processos relativos a casos de corrupção que envolvam pessoas jurídicas. Nesta toada, vale registrar, em sede de atuação administrativa, que, pela própria natureza de suas atividades e vocação para conduzir processos sancionadores, as corregedorias são, na maioria dos casos, as unidades designadas para a efetivação das medidas apuratórias previstas na Lei Anticorrupção. Assim é, e tem sido, na esfera federal, que as corregedorias, além de conduzirem as ações relacionadas à responsabilização de servidores públicos envolvidos em irregularidades, acabam igualmente por tratar das questões atinentes à responsabilização de pessoas jurídicas.
Relativamente a essa missão, o número de 506 servidores federais demitidos no ano de 2017, tal como inicialmente citado, serve como referência para que se compreenda a relevância e alcance do trabalho das corregedorias. E na hipótese de que as 335 expulsões relacionadas a casos mais graves tenham ocorrido em razão de atos praticados após janeiro de 2014 — início de vigência da Lei 12.846/13 —, é possível que novas apurações administrativas sejam iniciadas em face de pessoas jurídicas que porventura estejam envolvidas na prática desses ilícitos. Oportuno destacar que, nos primeiros seis meses deste ano, 300 servidores públicos federais foram demitidos, o maior número para o período[3]. Desses, 64% foram expulsos em razão da prática de corrupção, o que evidencia a dimensão da tarefa relativa à responsabilização de eventuais empresas corruptoras que tenham participado do ilícito.
Adicionalmente, insta destacar que, considerando a própria tipologia do rol de comportamentos previstos no inciso IV do artigo 5º da Lei 12.846/13, diversas irregularidades praticadas em procedimentos licitatórios ou na execução de contratos administrativos podem resultar em apurações fundamentadas naquele diploma legal. Assim, além das sanções previstas em leis que tratam de licitações e contratos, a pessoa jurídica poderá também ter sua responsabilidade aferida com fulcro na Lei Anticorrupção.
Diante de tal cenário, o adequado e permanente treinamento de agentes públicos responsáveis pela aplicação da Lei Anticorrupção na esfera administrativa apresenta-se como providência inarredável. De fato, a complexidade dos casos de corrupção envolvendo pessoas jurídicas, e o influxo de regras e princípios de diversos ramos do Direito, ressalta a importância da constante capacitação de servidores, o que já vem sendo realizado em cursos oferecidos pelo Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU)[4].
A uniformidade e a indispensável segurança jurídica para a devida aplicação da Lei 12.846/13 são aspectos que, igualmente, merecem a mais focada atenção. Nessa direção, não se pode olvidar que o microssistema jurídico aqui ventilado tem caráter nacional, o que significa que o regime de responsabilização, previsto nessa lei, é de competência da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, assegurada a possibilidade da imposição de sanções administrativas por todos esses entes. Tendo em consideração a significativa quantidade de atores com aptidão para a aplicação da Lei Anticorrupção, e as mais distintas realidades sociais e econômicas, que decorrem da extensão e variedade do território brasileiro, é manifesta a existência do risco de certa instabilidade na interpretação das normas e princípios consubstanciados na aludida norma. Oportuno frisar que o atingimento do pleno caráter inibitório e preventivo da lei depende da sua efetiva e coerente aplicação.
A corrupção, como desvalor social, não escolhe geografia ou lugar. Procura apenas a oportunidade e facilitação. E é por isso que a regulamentação da lei, mesmo não sendo obrigatória a estados e municípios, a estes se apresenta como providência oportuna e altamente recomendável. Eis que, além de garantir os contornos jurídicos adequados para o rito procedimental observado no respectivo processo administrativo sancionador, a existência de norma regulamentadora confere a segurança que é requerida para a adequada dosimetria da multa administrativa e atende a outras questões igualmente relevantes e que não são tratadas de modo exaustivo pela Lei 12.846/13. Registre-se, positivamente, que, de acordo com recente pesquisa[5], 13 estados e o Distrito Federal já regulamentaram a lei e, recentemente, mais dois estados igualmente editaram normas regulamentadoras (Rio de Janeiro e Paraíba). No plano municipal, é oportuno mencionar a publicação, neste mês de agosto, de ato regulamentador por parte da Prefeitura de Belo Horizonte, bem como a publicação pela CGU, ainda em 2017, de três diferentes modelos de decretos para a regulamentação da lei, considerando justamente o porte e as particularidades do município[6].
Em complemento a essas considerações, que em seu conjunto dizem respeito a uma cultura nova de ética nos negócios públicos e privados, cumpre fazer alusão à crescente relevância que as questões relacionadas ao universo do compliance e da integridade corporativa alcançaram em período recente. Com efeito, não obstante a pretérita existência de regras voltadas à prevenção de ilícitos no campo da lavagem de dinheiro e de discussões pontuais acerca do compliance criminal e da prevenção de ilícitos por parte de pessoas jurídicas, é inegável que o advento da Lei Anticorrupção propiciou novo relevo à abordagem de tal assunto.
Apesar de a Lei 12.846/13 dispor que “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade” tem aptidão somente para influir na dosimetria das respectivas sanções administrativas, a adequada percepção da importância da efetiva implementação e do contínuo aperfeiçoamento desses instrumentos para prevenir, identificar e remediar a prática de ilícitos vem ganhando espaço no cenário corporativo. O tratamento da matéria em âmbito federal, por meio do Decreto 8.420/15, pavimentou o trajeto para que a discussão fosse definitivamente incorporada à pauta dos principais temas da atualidade, notadamente em razão da específica previsão dos elementos que devem compor a arquitetura dos programas de compliance. Ainda, o citado diploma infralegal também determina que o assunto deve estar presente em eventuais negociações para celebração de acordos de leniência.
Infere-se, dessa forma, que a carga normativa positivada no arcabouço jurídico relativo à Lei Anticorrupção, bem como o incremento da percepção social dos substanciais prejuízos advindos de práticas ilícitas, já se constituem e são assumidos, em nosso país, como importantes componentes no fomento à cultura de integridade corporativa. Essa é uma conquista já contabilizada, mas é preciso ainda mais. Além do constante engajamento do setor privado no debate e do comprometimento irrestrito de empresas na luta contra a corrupção, é mister que os órgãos e entidades públicos responsáveis pela aplicação da Lei 12.846/13 adotem certa uniformidade e harmonia na avaliação dos programas de compliance.
De fato, considerando que a presença de mecanismos de integridade na estrutura de uma pessoa jurídica tem potencial para mitigar as sanções eventualmente aplicadas em decorrência da Lei Anticorrupção, é forçoso reconhecer a imperiosa necessidade de critérios claros e transparentes na ponderação desses elementos. Dessa maneira, será possível sinalizar o que se espera de uma pessoa jurídica comprometida com valores éticos e íntegros, sem deixar de considerar, logicamente, o porte, ramo de negócios e outras especificidades daquele agente. E, nesse contexto, é também oportuno e pertinente registrar a recente alteração da Portaria CGU 910/05[7], que passou a prever que a metodologia de análise do programa de integridade e outros tópicos relativos ao assunto serão disciplinados em orientações publicadas, em conjunto, pela Corregedoria-Geral da União e pela Secretaria de Transparência e Prevenção da Corrupção, unidades integrantes da CGU.
Em modo de conclusão, e diante das considerações acima, é possível afirmar, com acentuado grau de convicção, que, cinco anos após ter sido incorporada a nosso ordenamento jurídico, a Lei Anticorrupção já foi capaz de dar seus primeiros passos para a construção de ambiente permeado por boas práticas em âmbito empresarial. O intenso e caloroso debate acerca das mais diversas questões relativas aos mecanismos de integridade no segmento privado, o avanço e esforço dos entes federados para a devida regulamentação da norma e sua adequada aplicação, bem como o início da persecução administrativa em casos de corrupção alcançados pela Lei 12.846/13 são fatores que devem ser considerados nessa avaliação.
É certo que estamos apenas no início dessa caminhada, e que os desafios são significativos quando decorrem desse novo modelo de responsabilização no âmbito das práticas negociais. Contudo, é facilmente perceptível que a Lei 12.846/13, desde o início de sua vigência, vem resultando em um balanço francamente favorável ao efetivo enfrentamento à corrupção.
[1] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-brasil/2018/01/28/em-4-anos-da-lei-anticorrupcao-uniao-abre-183-processos-e-penaliza-30-empresas.htm
[2] http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2018/01/politica/605527-governo-federal-expulsou-506-funcionarios-em-2017-maior-parte-por-corrupcao.html
[3] http://www.cgu.gov.br/noticias/2018/07/300-servidores-federais-foram-expulsos-por-irregularidades-no-primeiro-semestre-de-2018
[4] Em 2017, a CGU capacitou mais de 1.200 agentes públicos, de todas as esferas de governo, para a devida aplicação da Lei Anticorrupção.
[5] https://www.valor.com.br/legislacao/5705177/maioria-dos-estados-ainda-nao-pune-empresas-por-atos-de-corrupcao
[6] http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/transparencia-publica/colecao-municipio-transparente/arquivos/cartilha-sugestoes-de-decretos-para-a-regulamentacao-da-lei-anticorrupcao-nos-municipios.pdf
[7] http://www.cgu.gov.br/sobre/legislacao/arquivos/portarias/portaria_cgu_910_2015.pdf
* Antonio Carlos Vasconcellos Nóbrega é corregedor-geral da União e professor de Compliance no IBMEC-DF. Mestre em Direito, Instituições e Desenvolvimento pela Universidade Católica de Brasília e pós-graduado em Direito Empresarial pela FGV/RJ e em Direito do Consumidor pela Escola de Magistratura do Rio de Janeiro.