Projeto de regulamentação avançou em diversos pontos, como o cashback, mas mantém privilégios e isenções inexplicáveis
A Reforma Tributária, se bem implantada, pode reduzir um velho problema brasileiro, a sonegação. Pelo mecanismo da não cumulatividade, cada etapa da cadeia produtiva só terá crédito se seus fornecedores tiverem recolhido imposto. Isso está sendo criticado como sendo uma forma de transferência da responsabilidade de fiscalização ao contribuinte. É, na verdade, um dos seus méritos. O país precisa de uma nova atitude de empresas e pessoas em relação ao dinheiro coletivo. Não basta apenas pagar impostos, é preciso que o consumidor exija nota fiscal e as empresas usem seu poder para que seus fornecedores e clientes também paguem. Isso é cidadania fiscal.
É qualidade também da reforma a busca de maior foco nos pobres na hora de conceder o benefício tributário. Isso se faz com uma cesta básica mais restrita que a de hoje para a total desoneração. No Brasil, a ideia sempre foi a de ampliar ao máximo a isenção em alimentos com a certeza de que isso é bom para os pobres. Mas se não têm acesso a esses bens, que vantagem teria o consumidor de baixa renda? Talvez tenha sido restrita demais a lista de alimentos com a alíquota zero, dado que, por exemplo, todas as carnes bovinas tenham ficado no rol em que há apenas um abatimento no imposto.
O cashback pode vir a ser o caminho para a devolução aos pobres do que eles pagaram no mais injusto dos tributos que é o indireto. No Brasil, o sistema já funciona no Rio Grande do Sul. Segundo o governador Eduardo Leite, foi implantado lá em 2021, chamado Devolve ICMS, já distribuiu até agora R$ 619 milhões, a 627 mil famílias do CadÚnico.
O problema é manter ou criar os privilégios numa tributação que se propõe a inovar, corrigir distorções e plantar o futuro. Não há explicação para que sejam dados descontos no recolhimento de impostos a categorias de profissionais liberais. O que uma grande banca de advocacia tem que mereça pagar menos impostos? Ou um grande escritório de arquitetura e engenharia ou uma consultoria de economistas?
O governo diz que ele está implementando o que saiu do Congresso, sem inovar ou cortar nada. Esta etapa é de fato uma forma de colocar em prática decisões tomadas durante a tramitação do processo no Legislativo. Mas é de qualquer maneira inexplicável que o Brasil permaneça ainda com os mesmos defeitos que o fizeram um dos países mais desiguais do mundo.
É lamentável também não ver nem um caminho de redução desse enorme custo fiscal para o país que é a Zona Franca de Manaus. Ela nunca foi uma plataforma de exportação, sempre foi uma maneira de importar sem impostos para vender internamente. A Zona Franca precisa de incentivos para se tornar um polo de economia dos produtos da região, de biotecnologia e bioindústria. Criada pelos militares como um enclave de paraíso fiscal, se eternizou e da última vez em que os seus benefícios se aproximavam do fim, foram renovados até 2073, no governo Dilma. Agora era a oportunidade de repensar a Zona Franca, mas nada muda nesse assunto. Se nada muda, é porque os defeitos foram mantidos.
Simplificar o pagamento de impostos, unificar legislações, criar plataformas mais modernas de quitar tributos sobre o consumo, tudo isso é bom, mas insuficiente. O modelo tributário existente foi criado em um governo autoritário, sem debate com ninguém, como um projeto de tecnocratas.
A reforma atual consumiu muitas negociações e muita explicação. Foi feita na quinta-feira no Ministério da Fazenda, o que talvez seja um recorde em termos de coletiva à imprensa: 8 horas e 41 minutos. Nela, o secretário Bernard Appy disse que essa regulamentação foi negociada entre 309 pessoas durante três meses, ao longo de 330 reuniões. Além de vários órgãos do governo, havia representantes de todos os estados e de municípios. Ele se orgulhou de que com tanta gente envolvida nada havia vazado para a imprensa. O segredo não é exatamente um mérito. O Plano Real foi anunciado etapa por etapa e nisso residiu sua principal qualidade. Mas entende-se que na elaboração fosse necessário um tempo de conversas fechadas.
Daqui para diante, no entanto, é fundamental manter a transparência e a capacidade de comunicação. Reformas econômicas bem-sucedidas são aquelas que a população entende exatamente o que está sendo feito. “Tributês” não é língua corrente no país. Tudo terá quer ser dito e explicado em bom português.
Fonte: O Globo