PLP 108/24 prevê 37 hipóteses de infração dos contribuintes e vai contra o espírito de simplificação pretendido pela EC 132/23
O segundo projeto de lei que regulamenta a Reforma Tributária ainda está em discussão, e o momento é propício para os debates se estendam também para as sanções previstas para os contribuintes que descumprirem suas obrigações tributárias. Isso porque o Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 (PLP 108/24) prevê nada menos do que 37 hipóteses de infração dos contribuintes, passíveis de punição. O número é considerado elevado pelos especialistas, que avaliam que a proposta vai contra a simplificação almejada pela Reforma Tributária (Emenda Constitucional 132/23).
Raphael Castro, associado do Vieira Rezende Advogados, considera que a multiplicidade de hipóteses de infrações tende a reintroduzir a complexidade que a Reforma Tributária pretendeu eliminar, replicando a lógica excessivamente burocrática e punitivista do antigo modelo. “Além disso, ao detalhar minuciosamente condutas puníveis, o PLP pode comprometer a eficiência do novo sistema ao gerar novas oportunidades para litígios, controvérsias interpretativas e entraves operacionais. Essa questão é especialmente sensível considerando que o novo modelo busca a centralização da arrecadação e a uniformidade de regras por meio do Comitê Gestor do IBS, o que pressupõe uma estrutura sancionatória simplificada e harmônica”, avalia.
Para o advogado, o PLP 108/24 ainda mantém, em grande medida, uma lógica punitivista e fiscalizatória tradicional, sem avançar de forma significativa em uma abordagem mais cooperativa e dialógica. “[…] mais do que regulamentar tecnicamente os novos tributos, o PLP nº 108/24 precisa incorporar uma mudança de paradigma na cultura tributária nacional, abandonando a lógica de desconfiança e punição para adotar um modelo baseado na cooperação, no diálogo e no incentivo à conformidade. Somente assim, será possível concretizar os objetivos da reforma tributária e construir um sistema mais justo, funcional e alinhado com as boas práticas internacionais.”
Pontos para aprimoramento no PLP 108/24
Para reduzir a cultura punitivista e avançar na criação de uma convivência mais colaborativa entre fisco e contribuintes, Castro considera que o PLP 108/24 poderia prever instrumentos concretos de incentivo à conformidade tributária, como programas de compliance fiscal, que reconheçam e recompensem o bom comportamento dos contribuintes. “Nesse sentido, poderia, por exemplo, estabelecer canais permanentes de diálogo e orientação entre Fisco e contribuintes, com emissão de interpretações vinculantes, divulgação de boas práticas e esclarecimento de dúvidas com efeito normativo, reduzindo, assim, a margem para autuações por divergência interpretativa.” A ampliação das hipóteses de autorregularização também seria bem-vinda, em sua avaliação, uma vez que aceleram a arrecadação, reduzem o contencioso e estimulam a cooperação.
Na entrevista abaixo, o advogado do Vieira Rezende aborda os pontos do PLP 108/24 relacionados às punições previstas para os contribuintes.
Em linhas gerais, o que o PLP 108/24 prevê com relação à aplicação de multas e outras penalidades sobre os contribuintes, referentes ao IBS e à CBS?
Raphael Castro: O Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, que regulamenta aspectos centrais da reforma tributária trazida pela Emenda Constitucional nº 132/2023, buscou, dentre outras coisas, disciplinar a aplicação de multas e outras penalidades aos contribuintes no contexto dos novos tributos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
Nesse sentido, o projeto busca estabelecer um regime sancionatório mais uniforme, orientado por princípios como a proporcionalidade, a razoabilidade e a segurança jurídica, ao estabelecer que as penalidades devem ser aplicadas de acordo com a gravidade da infração, evitando punições desproporcionais a infrações menores. Também há previsão de atenuantes, como a possibilidade de redução das multas em casos de regularização espontânea ou antes do início de ação fiscal.
Outro ponto importante é a vedação expressa às chamadas sanções de natureza política, aquelas que restringem o exercício de atividades econômicas como forma de coagir o pagamento de tributos, em consonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Não obstante, importa destacar que um pertinente ponto de crítica ao PLP nº 108/24 é a criação de 37 hipóteses de infração, uma quantidade que não é apenas excessiva, mas revela um descompasso com o novo desenho constitucional, que tem por fim propor um sistema tributário mais enxuto e orientado à cooperação entre Fisco e contribuinte.
– A proposição difere muito em relação à sistemática atual, prévia à Emenda Constitucional 132/23?
Raphael Castro: O PLP nº 108/2024, ao estabelecer 37 hipóteses de infrações tributárias relacionadas ao IBS e à CBS, levanta preocupações quanto à sua compatibilidade com o novo modelo constitucional instituído pela Emenda Constitucional nº 132/2023.
Como se sabe, a EC nº 132/23 foi proposta com a missão de inaugurar uma estrutura tributária voltada à simplificação, à transparência, à padronização e à redução da complexidade do sistema, buscando corrigir distorções históricas e diminuir o contencioso fiscal. Em oposição, a criação de um número tão elevado e detalhado de infrações contraria o espírito da reforma.
Afinal, a multiplicidade de hipóteses de infrações tende a reintroduzir a complexidade que a EC nº 132/23 pretendeu eliminar, replicando a lógica excessivamente burocrática e punitivista do antigo modelo. Além disso, ao detalhar minuciosamente condutas puníveis, o PLP pode comprometer a eficiência do novo sistema ao gerar novas oportunidades para litígios, controvérsias interpretativas e entraves operacionais.
Essa questão é especialmente sensível considerando que o novo modelo busca a centralização da arrecadação e a uniformidade de regras por meio do Comitê Gestor do IBS, o que pressupõe uma estrutura sancionatória simplificada e harmônica.
Desse modo, ao invés de promover uma abordagem mais racional e focada nas condutas efetivamente lesivas, o PLP nº 108/24 reproduziu uma cultura de penalização excessiva, pouco condizente com os princípios estruturantes da EC nº 132/23.
– Alguns – caso do Centro de Cidadania Fiscal, o CCiF – sugerem uma abordagem mais cooperativa entre o Fisco e o contribuinte. Em sua visão, essa questão merece ser mais discutida, no âmbito do PLP 108/24?
Raphael Castro: O Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 representa uma oportunidade decisiva para modernizar não apenas as normas técnicas tributárias, mas também a relação entre o fisco e os contribuintes. No entanto, chama atenção o fato de que o projeto ainda mantém, em grande medida, uma lógica punitivista e fiscalizatória tradicional, sem avançar de forma significativa em uma abordagem mais cooperativa e dialógica.
Como a ordem tributária constitucional decorrente da EC nº 132/23 tem como um de seus pilares a simplificação e a racionalização do sistema, esperava-se que no âmbito do PLP nº 108/24 tivesse ocorrido uma ampla discussão em torno da adoção de práticas preventivas, em lugar de medidas predominantemente repressivas, o que contribuiria para a redução de litígios, aumento da arrecadação de forma estável e fortalecimento da cidadania fiscal.
Isso significa que, mais do que regulamentar tecnicamente os novos tributos, o PLP nº 108/24 precisa incorporar uma mudança de paradigma na cultura tributária nacional, abandonando a lógica de desconfiança e punição para adotar um modelo baseado na cooperação, no diálogo e no incentivo à conformidade. Somente assim, será possível concretizar os objetivos da reforma tributária e construir um sistema mais justo, funcional e alinhado com as boas práticas internacionais.
– O que poderia ser mudado no PLP 108/24, visando a conformidade do contribuinte e a arrecadação do Estado?
Raphael Castro: Para que o PLP 108/24 esteja alinhado aos princípios consagrados na EC 132/2023 é imprescindível que deixe de lado a cultura da punição como regra e incorpore uma visão moderna da administração tributária, centrada na conformidade, na previsibilidade e na cooperação institucional.
Isso significa que o PLP deveria prever instrumentos concretos de incentivo à conformidade tributária, como programas de compliance fiscal, que reconheçam e recompensem o bom comportamento dos contribuintes. Tais programas já são adotados em diversas administrações tributárias e têm se mostrado eficazes na construção de uma cultura de respeito mútuo, transparência e confiança.
Nesse sentido, poderia, por exemplo, estabelecer canais permanentes de diálogo e orientação entre Fisco e contribuintes, com emissão de interpretações vinculantes, divulgação de boas práticas e esclarecimento de dúvidas com efeito normativo, reduzindo, assim, a margem para autuações por divergência interpretativa.
Somado a isso, seria pertinente ampliar as hipóteses de autorregularização, com redução de multas e encargos para os contribuintes que corrigirem espontaneamente eventuais falhas, especialmente antes do início de procedimentos de fiscalização. Essas medidas favorecem uma arrecadação mais célere, reduzem o contencioso e estimulam a cooperação.
Por fim, é necessário repensar a própria lógica da fiscalização, que não pode ser pautada apenas na repressão, mas, sobretudo, na prevenção e no acompanhamento contínuo do comportamento fiscal dos contribuintes.
Um modelo mais colaborativo, aliado ao uso de tecnologia e inteligência fiscal, pode proporcionar ganhos significativos de eficiência na arrecadação, sem a necessidade de ampliar a litigiosidade ou sobrecarregar os contribuintes com obrigações principais e acessórias desnecessárias.
Fonte: Legislação e Mercados