Campo Grande (MS) – Com a promulgação da aguardada reforma tributária em 2023, o Brasil se encaminha para uma notável transformação em seu sistema fiscal. Ao longo das últimas décadas, a intricada teia tributária brasileira tem sido motivo de preocupação, destacando-se como uma das mais complexas do mundo, com uma carga tributária sobre o consumo que representa 13,5% do PIB, conforme apontado pelo último estudo da Receita Federal, em 2020. O cerne da Reforma concentra-se na pretensa simplificação do sistema tributário, na mitigação de controvérsias fiscais e na distribuição mais equitativa da carga tributária. Contrariando expectativas, o objetivo não é a redução global da carga tributária, mas, sim, uma redistribuição mais eficiente entre os setores da economia.
Um dos pilares dessa reformulação é a criação de uma tributação sobre o valor agregado, nos moldes de Imposto sobre Valor Agregado – IVA, que aglutina e extingue diversos tributos sobre o consumo, como ICMS, IPI, ISS, PIS/PASEP e COFINS, consolidando-os em três novos tributos: um IBS repartido entre estados e municípios, uma Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS federal e um Imposto Seletivo – IS de caráter residual, também federal. Ainda na simplificação, outro fator importante é a implementação do Princípio do Destino que visa encerrar a chamada “guerra fiscal” entre estados e municípios.
O regime do Simples Nacional persistirá, porém com modificações que facultam aos contribuintes a escolha entre duas formas de tributação. Esta mudança pode impactar a transferência de créditos para os clientes, potencialmente resultando em um aumento da carga tributária e na perda de competitividade para as empresas que optarem por esse regime.
A reforma visa reduzir controvérsias fiscais por meio da unificação dos impostos, diretrizes para benefícios fiscais e a introdução do sistema de cashback, restituindo parte do valor pago a título de tributos ao consumidor, para estimular o consumo, especialmente entre os menos favorecidos. Entretanto, a transição para o novo sistema será gradual, com início previsto para 2026, contemplando o aumento das alíquotas do IBS e CBS e a redução das alíquotas de ICMS e ISS, com vigência plena até 2033. Há preocupações quanto ao potencial aumento da carga tributária, especialmente no setor de serviços, caso a Reforma não seja suficiente para cobrir o déficit atual do governo, principalmente porque a Reforma Tributária não está vindo acompanhada de uma iniciativa para diminuição dos gastos públicos ou, ao menos, sua maior eficiência.
A introdução do IS levanta questionamentos sobre sua eficácia, dado o caráter genérico da classificação de produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, além da possibilidade de um aumento do contencioso tributário devido à complexidade inédita do imposto. A ausência de previsão para o uso do princípio da seletividade na dosimetria das alíquotas e a destinação das receitas geram incertezas sobre a eficácia desse novo tributo de acordo com as premissas da Reforma (simplificação e racionalização do sistema).
Apesar das mudanças significativas propostas, a reforma tributária ainda suscita incertezas e críticas. A Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo – FecomercioSP, por exemplo, destaca preocupações quanto à alíquota do IVA, que pode se tornar a maior do mundo, e aponta que a Reforma não oferece garantias de simplificação efetiva. A transição de sete anos com dois sistemas tributários simultâneos é vista como um desafio, e o setor de serviços, bem como as micro e pequenas empresas, podem ser afetados negativamente.
Além desses aspectos voltados diretamente ao consumo, a Reforma introduziu algumas mudanças em relação à tributação da propriedade e do patrimônio, com efeito inclusive mais imediato. Dentre as modificações já implementadas, destacam-se as transformações no IPVA e no Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD.
No contexto do IPVA, a extensão da cobrança para aeronaves e embarcações representa um marco significativo. Anteriormente isentas desse tributo estadual, essas categorias de veículos agora impõem novas obrigações fiscais aos proprietários, impactando diretamente o setor de aviação e navegação. Destaca-se que a exceção concedida às companhias aéreas certificadas para prestação de serviços a terceiros visa evitar possíveis repasses ao consumidor final, reconhecendo a especificidade desse segmento altamente concentrado e operando, muitas vezes, com saldo negativo. Adicionalmente, a inovação que permite a aplicação de alíquotas diferenciadas no IPVA, com base no impacto ambiental dos veículos, responde às demandas por práticas mais sustentáveis. Essa medida não apenas amplia a arrecadação, mas também busca incentivar a adoção de tecnologias mais limpas, como carros elétricos e híbridos, alinhando-se a compromissos ambientais globais.
No âmbito do ITCMD, a progressividade das alíquotas emerge como uma mudança estrutural. Antes, comumente o imposto incidia com alíquota fixa, independentemente do valor transmitido. Agora, com a imposição da progressividade, será uniforme que o tributo seja mais sensível ao montante transmitido, seguindo uma lógica de aumento proporcional conforme o acréscimo patrimonial. Essa alteração está inclusive alinhada ao entendimento do STF, que considerou constitucional a aplicação de alíquotas progressivas para o ITCMD. É crucial ressaltar que a progressividade do ITCMD pode representar um aumento da carga tributária para os contribuintes, especialmente nos estados que historicamente não possuem essa prática. Estados como o Rio de Janeiro e Pernambuco, que já utilizavam alíquotas progressivas, podem agora servir de referência para outras unidades federativas ajustarem suas legislações.
Em síntese, embora o IPVA e o ITCMD possam não ser os protagonistas principais da Reforma Tributária, as mudanças que os afetam têm implicações significativas, demandando uma atenção cuidadosa por parte dos contribuintes. A atribuição de critérios ambientais ao IPVA e a ampliação de sua cobrança, bem como a introdução da progressividade no ITCMD, são passos importantes na modernização do sistema tributário, mas também exigem planejamento e adaptação por parte dos envolvidos. A reforma tributária busca reconfigurar o sistema fiscal brasileiro, enfrentando desafios e incertezas que podem impactar diferentes setores da economia nos próximos anos.
Fonte: Migalhas