Campo Grande (MS) – A comemoração pela aprovação da reforma tributária, no final do ano passado, ficará marcada na história econômica. Mas nem todos se deram conta que os detalhes serão tratados por leis complementares — que vão ao Congresso nos próximos meses. Caberá a essas normas regulamentar o novo sistema tributário, detalhando cada novo item aprovado no ano passado. O rascunho desse conjunto de regras, segundo Bernard Appy, secretário extraordinário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, deve ser enviado até abril — a depender das articulações políticas entre governo e Legislativo para aprovar os textos.
“No início de abril seria uma data razoável para prever o envio dos projetos para o Congresso”, diz Appy em entrevista exclusiva à EXAME. “Mas volto a falar: nem todas as variáveis estão sobre o controle da área técnica.”
De forma geral, a emenda constitucional dá as linhas gerais da reforma tributária que extinguiu cinco tributos (PIS, Cofins, ICMS, ISS e IPI — que será parcialmente extinto) e criou dois impostos de valor agregado, o IBS e a CBS — um para os estados e municípios e um para a União. “Vai ser criado também um imposto seletivo. Essa é a linha geral”, afirma. “O detalhamento de como isso vai ser operacionalizado depende de uma legislação complementar, que é o que está sendo elaborado agora.”
No total, a área técnica da Fazenda estuda desmembrar a regulamentação da reforma tributária em quatro propostas: um projeto de lei para tratar da regulamentação do IBS e da CBS, outro, do comitê gestor — que será o órgão gerido conjuntamente pelos estados e municípios e responsável pela arrecadação do IBS. “Um terceiro projeto tratando do Imposto Seletivo, que é um imposto federal. E um quarto, que foi um pedido das áreas técnicas, tratando do processo administrativo fiscal, que é toda a parte de contencioso administrativo dos novos tributos”, afirma o secretário. “Do ponto de vista técnico, estamos trabalhando neste momento com esses quatro projetos. Isso não é garantia de que quatro projetos serão enviados. Tem uma avaliação depois, política, se é conveniente.”
Na conversa com EXAME, Appy destrincha os próximos passos, a organização dos trabalhos, o combate à sonegação e a preparação para a próxima etapa da reforma tributária, a do Imposto de Renda. Leia na íntegra.
Em 2023, o Congresso promulgou a PEC da reforma tributária. Trata-se de um movimento histórico do país. Mas muitos não entenderam ainda a importância das leis complementares à PEC, que são o próximo passo. Qual é a importância da confecção dessas leis que vão tratar dos detalhes da reforma tributária?
A emenda constitucional promulgada pelo Congresso dá as linhas gerais da reforma tributária. Estabelece que serão extintos 5 tributos atuais (PIS, Cofins, ICMS, ISS e IPI — que será parcialmente extinto). Também estabelece que serão criados o IBS e a CBS, dois impostos sobre valor adicionado — um para os estados e municípios e um para a União. Vai ser criado também um imposto seletivo e vão ter normas muito mais simples do que as atuais, que geram muito menos distorções. Essa é a linha geral. O detalhamento de como isso vai ser operacionalizado depende de uma legislação complementar, que é o que está sendo elaborado agora. A própria emenda constitucional determinou que o Executivo teria 180 dias para enviar esses projetos ao Congresso. Há uma demanda do Congresso de que esse envio seja feito antes, para haver tempo de apreciação deles nesse ano, um ano eleitoral e, portanto, o trabalho do congresso do início do segundo semestre provavelmente até o final de outubro certamente estará num ritmo mais lento.
Qual é o racional inicialmente desses projetos que serão enviados ao Congresso e como a Fazenda se organizou para dar conta de tantos detalhes?
Montamos uma estrutura para formular esses projetos não só pelo governo federal, mas um trabalho em conjunto com estados e municípios. Muitas questões ficaram para a lei complementar, como o detalhamento exato, a fórmula, como vai ser calculada a alíquota. Está previsto que vai ser mantida a carga tributária, mas qual vai ser exatamente a fórmula que eu vou usar? Como é que vai ser exatamente a fórmula que determina o critério de distribuição dos recursos para os estados e municípios do imposto que vai ser cobrado conjuntamente pelos estados e municípios (IBS)? Como é que vai ser exatamente a governança do comitê gestor, gerido conjuntamente pelos estados e municípios? Além de detalhamentos do próprio imposto, como: o que exatamente caracteriza a incidência? A Constituição fala em operações com bens e serviços. Mas exatamente o que caracteriza essas operações? Qual é a base de cálculo exata que vai ser usada? Como exatamente eu vou calcular e fixar a alíquota? Tudo isso estará nestas leis complementares que vão detalhar aquilo que está previsto na Constituição.
Como as empresas devem acompanhar esse debate?
Do ponto de vista das empresas, tem alguns pontos relevantes porque a regra geral do novo tributo é uma regra só, uma alíquota, não cumulatividade… Ou seja, todo o imposto incide nas minhas vendas, dá crédito para quem adquiriu esse produto. Mas a própria Constituição prevê que alguns bens e serviços vão ter alíquotas reduzidas e define as categorias desses bens e serviços. A definição precisa de quais bens e serviços dentro dessas categorias cabe à lei complementar. Algumas situações vão ter um regime que chamamos de específico, uma forma um pouco diferente de cobrar o imposto. Nessas situações precisa definir exatamente qual vai ser esse regime. Já tinha um trabalho prévio, mas agora está sendo discutido com os estados e municípios. Os próprios estados montaram uma estrutura paralela, e o resultado desse trabalho deles está sendo trazido para o debate. As duas entidades municipalistas estão participando estão fazendo uma discussão paralela. Então, estamos consolidando todo o trabalho que estava sendo feito sobre essa regulamentação.
Qual o maior pleito que os estados e municípios têm trazido para mesa?
Não tem um pleito específico, é uma construção conjunta. As questões federativas, que afetam mais a distribuição de receitas dos estados e municípios, as principais delas já foram definidas na emenda constitucional. O trabalho está sendo feito de forma conjunta porque avaliamos que, como a legislação vai ser a mesma para a CBS, federal, e para o IBS, dos estados e municípios, seria muito mais legítimo se tivéssemos uma proposta desenvolvida conjuntamente pelas três esferas da federação.
E qual foi a maneira de organizar esse trabalho?
Como o escopo é muito grande, para fazer isso montamos o Programa de Assessoramento Técnico da Implementação da Reforma da Tributação do consumo. Ele tem uma comissão de sistematização, o órgão máximo dentro desse programa, com vários secretários de Fazenda e 19 grupos técnicos. É um trabalho bastante grande. Começou na primeira semana de fevereiro, está andando bastante bem. Estou bastante otimista.
Qual é o cronograma com que os senhores trabalham? O senhor falou dos 180 dias que a Constituição dá ao Executivo, mas também citou que pretendem antecipar a entrega.
A portaria que criou esse programa estabeleceu o prazo de 25 de março para o envio do relatório e das minutas de leis complementares elaborados. Isso vai ser enviado para o ministro da Fazenda. Obviamente, o texto que vai ser enviado para o Congresso é do Executivo. Mas quanto mais consenso tiver na elaboração dessa proposta, mais ela tende a ser a base do que vai ser enviado para o Congresso.
Vocês estudam enviar quantos projetos de lei complementar?
No momento — e falo da área técnica –, trabalhamos com quatro. Seria um projeto de lei que trata da regulamentação do IBS e da CBS, inclusive transição, critério de distribuição da receita para estados e municípios, tudo em um único projeto. Outro que trataria do comitê gestor, que vai ser o órgão gerido conjuntamente pelos estados e municípios e responsável pela arrecadação do IBS. Um terceiro tratando do Imposto Seletivo, que é um imposto federal. E um quarto, um pedido das áreas técnicas, tratando do processo administrativo fiscal, que é toda a parte de contencioso administrativo dos novos tributos. Isso é o que está sendo feito na área técnica. Obviamente, para enviar ao Congresso, tem uma decisão da área política, se quer juntá-los ou não. Do ponto de vista técnico, estamos trabalhando neste momento com esses quatro projetos. Volto a falar, isso não é garantia de que quatro projetos serão enviados. Tem uma avaliação depois, política, se é conveniente.
E não haveria prejuízo, em sua visão, em juntar esses projetos ao enviá-los ao Congresso?
Não. Tudo vai ser discutido pelo Congresso. Se vai num único projeto ou mais de um projeto é uma definição política, mas não tem nenhum prejuízo.
Recentemente, algumas frentes parlamentares passaram a se movimentar e dizer que montariam grupos de trabalho paralelos para essas leis complementares. Como está o relacionamento com o setor produtivo? É possível já tentar amortecer um pouco do impacto que viria no Congresso agora?
O Congresso está criando alguns grupos, meio espelhando os criados no âmbito do nosso programa para discutir antes do envio do projeto a regulamentação. Chamaram várias entidades e atores do setor privado. Tem uma certa incompreensão. As pessoas acham que o setor privado não vai participar da elaboração do projeto. Vai, sim. Vai ser chamado para participar, inclusive já várias entidades manifestaram interesse em participar dos grupos técnicos.
Há mais de 16 delas com interesse em participar…
Exatamente. No primeiro momento, estamos trabalhando junto com estados e municípios porque é importante primeiramente alinhar entre os entes da Federação. Já pedimos que quem tem contribuição que o faça por escrito. Mas vai ter, sim, uma interlocução com as entidades do setor privado antes do envio ao Congresso.
O senhor falou de 25 de março para apresentação de minutas. Estamos, portanto, falando de potencialmente apresentar ao Congresso em abril?
Acredito que sim. No início de abril seria uma data razoável para prever o envio dos projetos para o Congresso. Mas volto a falar: nem todas as variáveis estão sobre o controle da área técnica.
Especificamente sobre o comitê que, durante a tramitação da PEC, causou alguma polêmica. O senhor já falou que nenhum ente federado teria poder, mas que teria de aplicar um protocolo, uma fórmula automática. Como a regulamentação afeta isso?
Estamos falando aqui especificamente da distribuição da receita para estados e municípios. E isto está sendo definido de forma muito clara na lei complementar. Não sei se vamos colocar a fórmula ou se vamos colocar um texto absolutamente claro. As duas possibilidades estão presentes. Mas a lei complementar vai ser muito clara. Esse comitê gestor, no que diz respeito à distribuição da arrecadação para estados e municípios, não vai ter poder. A função dele é arrecadar e distribuir segundo os critérios estabelecidos na lei complementar, que obedece o que está na Constituição. A emenda constitucional, na prática, ainda que com uma redação mais genérica, já determina como deve ser feita essa distribuição. A lei complementar apenas vai tornar mais claro o comando constitucional, mas o critério de distribuição de fato já está dado.
Ao quebrarmos esses quatro projetos. Qual o fio norteador de cada um desses textos?
O projeto que trata da — vamos chamar assim — “lei geral do IBS e da CBS” define qual é a incidência (o que chamamos de fato gerador), qual é a base de cálculo, como os entes vão fixar as alíquotas. Vai definir também o que é o destino da operação. Isso, sim, é um item importante não só para a fixação da alíquota como para a distribuição da receita entre os entes.
Uma das grandes mudanças da reforma foi mudar a forma de tributação da origem para o destino, correto?
Sim. Hoje, no ICMS, por exemplo, você cobra uma alíquota de 12% ou 7% no estado de origem e o resto no estado de destino. No novo modelo, o imposto todo pertence ao destino. Então, a alíquota que vai ser aplicada na operação é a alíquota do destino e o imposto pertence ao estado e ao município do destino. Então, a definição do que é destino é um item importante. Isso tudo está nesse projeto de lei complementar.
O senhor falou sobre a definição e detalhamento sobre quais bens e serviços vão ser tributados e quais serão reduzidos. Isso também estará nesse projeto da IBS e CBS?
Também está nesse projeto de lei complementar o detalhamento claro de quais são exatamente os bens e serviços que vão ter alíquota reduzida. Em alguns casos, 40% da alíquota padrão. Em alguns casos, alíquota zero — como cesta básica e alguns medicamentos. A mesma coisa vale para esses regimes específicos de tributação, isto é, combustíveis, serviços financeiros, operações com bens imóveis, bares, restaurantes, hotéis, agências de viagem, uma parte do transporte de passageiros. Além disso, a forma exata de fixação da alíquota de referência pelo Senado Federal, que é aquela que mantém a carga tributária. Porque serão três: uma da União, uma dos estados e municípios. Ou seja, qual vai ser exatamente o critério de submissão da receita para estados e municípios.
E o segundo projeto?
O segundo projeto trata do comitê gestor, de questões de direito administrativo, como qual o regime de contratação, o regime aplicável aos funcionários do comitê, o regime de compras, em suma, todas essas questões de direito administrativo. E trata obviamente da parte operacional. Ou seja, como é que o comitê gestor vai coordenar a fiscalização por parte dos entes? Como é que vai ser feita a coordenação da interpretação da legislação — como o IBS e a CBS têm a mesma legislação, estamos trabalhando para que a interpretação dos estados e municípios, via comitê gestor, e da União, seja a mesma.
Quais os detalhes dos projetos do imposto seletivo e do contencioso tributário?
Nesse caso, é a regulamentação de imposto seletivo que incide sobre produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. E, finalmente, o projeto que tratará do processo administrativo fiscal. É uma área que não domino muito, mas definirá como vai se dar todo o processo no caso de autuação. Em suma, é isso que está sendo desenhado agora.
Em se aprovando as leis complementares, qual é o efeito prático que o empresário e cidadão podem esperar?
Isso [a transição] já está previsto na emenda constitucional. Em 2025 é um ano só de preparação e 2026 é um ano de teste. Em 2026, a princípio, os novos tributos vão ser cobrados a uma alíquota conjunta IBS e CBS de 1%.Mas tem a possibilidade de eventualmente não [ser cobrado]. Isso porque seria cobrado e depois compensado da Cofins. A própria emenda constitucional já prevê que se cumpridas as obrigações acessórias — que é o que a gente precisa: as informações para ver se o sistema está funcionando — não necessariamente precisaria ser cobrado. Então, já tem algum efeito para para as empresas, mas é um ano de teste. Em 2027, tem a transição dos tributos federais. Assim, extingue-se Pis/Cofins, zera-se alíquota da maior parte do IPI, exceto aquilo que é industrializado na Zona Franca de Manaus, e se começa a cobrar a CBS com a alíquota cheia e o imposto seletivo.
E para os tributos estaduais e municipais?
Em 2027 e 2028, segue a mesma situação. Ou seja, cobra-se o imposto dos estados e municípios, o IBS, com uma alíquota bem baixinha para testar. Nesses anos já vai funcionando o princípio do destino, com a distribuição da receita pelo destino ainda que com a alíquota pequena para testar e ver se realmente a parte federativa do modelo está operando. De 2029 terminando em 2033, é feita a transição para os tributos dos estados e municípios, que são ICMS e o ISS. A alíquota vai baixando para ver se realmente alíquota do IBS vai crescendo progressivamente. Em 2033, acaba a transição. Então, para o empresário, a mudança do sistema está completa em 1º de janeiro de 2033. É isso que está previsto. Obviamente, o detalhamento de tudo isso vai estar nesta lei complementar que trata do IBS e da CBS.
Em síntese, qual o grande norte do trabalho que os senhores estão fazendo na regulamentação?
Uma coisa importante de falar é que todo o trabalho que está sendo feito em todos os grupos técnicos tem como objetivo tornar a vida do contribuinte o mais simples possível. Em princípio, a ideia é que para 99% dos contribuintes — sempre tem algum caso muito específico, tipo serviços financeiros — a obrigação é fazer suas vendas com emissão de documento fiscal eletrônico, registrar as compras que dão direito a crédito e ponto. A rigor é isso. A partir daí, passa a ter uma apuração, inclusive a sugestão é fazer uma escrituração pré-preenchida, assim como tem hoje no imposto de renda de pessoa física. A mesma coisa está sendo proposta para esse modelo.
A ideia também é buscar cercear a sonegação fiscal?
Ao mesmo tempo, temos uma preocupação muito grande de fazer um modelo de cobrança que feche o espaço para a sonegação. Uma grande vantagem no modelo é que, como a alíquota é calibrada durante a transição até 2033 de forma manter a carga tributária, quanto mais bem sucedido for o novo modelo em reduzir sonegação, menor vai ser a alíquota.
Seria um incentivo para o sistema como um todo para combater a sonegação para, com isso, diminuir o seu imposto?
Vai ser interesse de todo mundo trabalhar para ter a menor sonegação possível, porque isso significa uma alíquota menor para todo mundo.
Há alguma estimativa de quanto o país pode evitar de sonegação?
É muito difícil quantificar. A gente, obviamente, trabalha com alguns parâmetros internacionais, mas é um range . A gente não trabalha com número preciso. Mas temos um objetivo, que é certamente reduzir bastante em relação à situação atual do Brasil. Acredito que vamos ser bem sucedidos.
Qual é esse range?
Eu não posso falar. Até está detalhado em uma nota técnica do Ministério da Fazenda, mas temos usado como referência alguns padrões internacionais.
Outra fase da reforma tributária seria a mudança nas regras de tributação de renda. É hora de começar a discutir isso? Como a Fazenda tem trabalhado o tema?
O ministro tem dito que vai, por demanda do Congresso, priorizar primeiro a regulamentação da reforma do consumo. Mas estamos trabalhando também na elaboração das propostas de reforma da renda. A minha equipe está em um ritmo de sete dias por semana, 24 horas por dias. Então, estamos trabalhando nas duas pontas: na regulamentação da reforma do consumo e, em paralelo, no detalhamento das propostas da reforma do Imposto de Renda. Vamos priorizar o envio das propostas da regulamentação do consumo. Ainda vai ser decidido como será feita essa priorização, mas a demanda do Congresso é focar primeiro na regulamentação do consumo e em seguida na reforma da renda.
Sobre a reforma da renda, o senhor pode adiantar algo?
Não posso dar detalhes. O que é o seguinte: temos várias propostas sendo desenvolvidas na área técnica. O objetivo é ter um sistema que seja mais isonômico, que favoreça mais o crescimento econômico e mais progressivo no nível da pessoa física corrigindo distorções que acabam fazendo com que uma parcela das pessoas de alta renda no Brasil paguem pouco imposto. Esse objetivo permeia todas as propostas. Mas, em muitos casos, estamos considerando mais de de uma opção de como tratar o mesmo problema. E aí tem uma definição política. Por isso, não adianta ficar discutindo antes de ter a definição política de qual vai ser a reforma que vai ser enviada pro Congresso. Mas o trabalho técnico está sendo feito.
Fonte: EXAME