Campo Grande (MS) – Creio que devemos colocar a reforma tributária necessária e urgente numa perspectiva histórica mundial e nacional.
Quando falamos de reforma tributária falamos do quê? Da apropriação ou não de parte da renda nacional pelo Estado e governos, com o objetivo de manter a nação. Assim, dependendo do país, do regime e sistema de governo teremos diferentes centros de decisão sobre essa apropriação e, dependendo do período histórico, diferentes setores da economia e classes sociais penalizadas pelos tributos. E cada tributo tem sua função e destinação para determinada classe social a depender da época e do objetivo do poder político.
Os impostos e tributos são decisivos na evolução política histórica dos povos. Guerras e revoltas contra a elevação dos impostos, deflagradas não apenas por camponeses mas também pelas classes dominantes, eram a resposta ao arbítrio ou poder absolutista dos reis e impérios. Foi o que ocorreu na Inglaterra no século 17 com o Bill of Rights, quando a coroa teve que submeter ao Parlamento seu poder absoluto e divino nas decisões sobre impostos. Sob pena de ilegalidade, além da proibição de impostos excessivos e de punições cruéis e incomuns.
No Brasil, a derrama – cobrança de impostos atrasados pela Coroa portuguesa – deu origem à Inconfidência Mineira; e nos Estados Unidos, afundados em dívidas da guerra chamada dos sete anos, George III da Inglaterra impôs o monopólio de chá para a América, fixando um preço especial para os colonos que contrabandeavam aquele produto, além do imposto do Selo e do Açúcar, com o objetivo de garantir reserva de mercado consumidor da produção inglesa. Os colonos reagiram com a Festa do Chá (Tea Party), lançando ao mar o carregamento de chá de três navios da Companhia Britânica das Índias Ocidentais.
Sempre há luta política e disputa social em torno da questão tributária sobre quem paga, quanto, de que forma e com que objetivo. As classes sociais reagem à apropriação de suas riquezas, renda e propriedade ou patrimônio, sejam proprietárias ou não, trabalhadores ou pequenos produtores, comerciantes ou prestadores de serviços. E os impostos podem ter diferentes fatos geradores, são pagos em moeda nacional por pessoas físicas ou jurídicas e podem ser municipais, estaduais ou federais, têm a forma de impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições especiais.
O fator gerador dos impostos cobrados também é objeto de disputa política e social, pode concentrar ou distribuir renda se cobrado das classes que detêm renda, riqueza e patrimônio ou se cobrado sobre bens e serviços, de forma direta ou indireta, seja regressivo ou progressivo. Assim, o imposto de renda, riqueza e patrimônio é um imposto direto e pode ser progressivo, distribuindo renda. Já os impostos indiretos, por incidirem de forma geral com a mesma alíquota para todas classes, são regressivos e concentradores de renda. Os impostos podem, portanto, independente do seu destino, concentrar a renda nacional ou ser um fator de distribuir renda e ser destinado a serviços públicos universais gratuitos como saúde e educação, entre outros.
No Brasil, ainda estamos à espera de uma revolução social. Um caminho que foi percorrido pela Europa desde o século 19, quando fez uma revolução política, agrária e tributária para responder às revoltas camponesas e operárias, com o voto universal, o direito de greve e sindical, a distribuição de terras e a cobrança de impostos progressivos para sustentar um estado de bem estar social.
Aqui, o o que tivemos foi um movimento na mão inversa com a Lei de Terras de 1850 que determinou o predomínio dos grandes proprietários de terra, ameaçados pela imigração e pelo fim do tráfico negreiro criminalizado pela Lei Euzébio de Queiroz. No final do século 19 tivemos a imigração em massa de europeus e a abolição da escravidão, mas não o acesso à terra pelos ex-escravos ou pelos imigrantes. Ao contrário da maioria dos países onde os impostos incidem sobre a renda, riqueza e patrimônio, no Brasil eles são aplicados sobre os serviços e bens, são indiretos e regressivos, e não diretos e progressivos, levando a uma severa distorção que agrava ainda mais a natural concentração de renda do sistema capitalista vigente.
Juros, os vilões de sempre
Um país tem suas riquezas e classes sociais, uma determinada distribuição da renda nacional, que depende de como cada fator é remunerado: os salários, os aluguéis, juros e lucros, contados um e uma única vez. Ora se os juros são altíssimos, como no Brasil, quem detém o monopólio da poupança e do crédito cobrando juros se apropria mais da renda nacional. O lucro comparado com o salário é fator determinante para definir sua distribuição e os aluguéis, não só de imóveis mas de bens como a terra ou máquinas e equipamento, podem aumentar ou diminuir a renda desse item.
Nosso sistema tributário, além de injusto, passa a ser irracional e contraproducente pois destina a um dos fatores — os juros, que no fundo é o preço pelo aluguel do dinheiro — uma participação excessiva. Se o lucro também não é taxado, aprofunda-se a desigualdade. E se os juros que incidem sobre os empréstimos para a produção, os serviços e o comércio são altos, eles expropriam parte da renda dos próprios capitalistas e de seu lucro.
A questão dos juros é mais grave quando analisamos a dívida pública dos países e quem são seus detentores. Geralmente os donos da dívida pública dos países é uma parcela ínfima da população, cerca de 1% e a que já detém entre 25% a 30% da renda nacional. Se o juro real pago como serviço da dívida pública é altíssimo com no Brasil – na maioria dos países é negativo ou irrisório, mas não aqui – amplia-se ainda mais a concentração da renda.
Sobre uma dívida pública de R$ 6 trilhões faz uma diferença brutal pagar 1% ou 5% de juros de seu serviço. Estamos falando de R$ 60 bilhões ou de R$ 3OO bilhões, dinheiro que é expropriado do orçamento federal ou obtido com novos endividamentos que só aumentam a dívida pública, num círculo vicioso concentrador de renda.
Portanto, ao discutir a reforma tributária nosso objetivo maior deve ser taxar a renda, riqueza e patrimônio e inverter a pirâmide onde os ricos pagam menos impostos proporcionalmente que os pobres ou os trabalhadores e pequenos produtores; estabelecer impostos diretos e progressivos e não indiretos e regressivos; não taxar os investimentos, as exportações a pesquisa técnico-científica, a inovação, os salários; sustentar a previdência social com um imposto específico sobre a riqueza e o consumo de luxo ou seletivo sobre produtos como o cigarro, a bebida etc.
A reforma do IVA representa um avanço extraordinário, mas é preciso ter consciência de que um país tem suas riquezas e tem que decidir de onde extrairá recursos para acelerar o desenvolvimento e resolver sua desigualdade e pobreza. No nosso caso, temos quatro fatores a serem tributados: a agricultura, a mineração, o petróleo e o gás e a renda nacional.
Como vimos, estamos mal na taxação da renda nacional com um sistema que concentra renda e não distribuiu. A agricultura não paga impostos e é beneficiada pelos subsídios do Plano Safra, pela pesquisa e inovação da Embrapa e pelo uso e propriedade de um bem nacional, a terra. Não é justo. As empresas e os proprietários agrícolas precisam pagar imposto de renda e sobre lucro e dividendos, pagar impostos sobre a aplicação no mercado financeiro e na formação de fundos off shore ou exclusivos, sobre lucro sobre capital próprio.
A mineração outra fonte de tributação, sendo também a exploração de um bem nacional do subsolo, tem também ser tributada. Hoje é taxada via Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), de 6%, alíquota que precisa ser revista e majorada tendo em vista os lucros da Vale e do setor e a necessidade de investimentos para a redução dos seus previsíveis danos ambientais.
É na riqueza do petróleo e gás que devemos nos concentrar para criar um Fundo Soberano Nacional. É um gravíssimo erro não concentrar a tributação que se dá pela cobrança de royalties, participações especiais e bônus de assinatura pela exploração em campos de petróleo e gás. Esses impostos somaram R$ 110, 6 bilhões em 2023 (previsão), mas sua aplicação está dispersa. Os royalties são distribuídos para estados, municípios produtores e União. Há ainda os dividendos da Petrobras para a União por ser acionista majoritária da empresa.
Temos ainda os impostos federais e estaduais sobre o petróleo e gás e os derivados, como o IRPJ, PIS Cofins, ICMS, mas o que interessa para o desenvolvimento nacional é aproveitar o crescimento da exploração do petróleo e gás para alavancar o investimento público nas áreas prioritárias de educação, inovação, infraestrutura, meio ambiente. Devemos aproveitar a bem sucedida experiência dos países produtores de petróleo nos últimos 30 anos – temos exemplos como os da Noruega e dos países do Golfo, caso da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes e do Catar – e criar uma fonte segura de financiamento como um Fundo Soberano Nacional a partir da renda que a União recebe dos royalties do petróleo e dividendos da Petrobras.
Embora seja tema polêmico e quase proibido, a distribuição de royalties para estados e municípios precisa ser reavaliada. Basta ver quanto arrecada cada cidade produtora e o seu estado frente a real necessidade social e econômica da população dessas cidades e de sua região frente às demais regiões do país. Há que se ter pelo menos uma imposição legal para a destinação desses recursos para as áreas prioritárias como saúde, educação, inovação, mobilidade urbana, saneamento, lazer e cultura e, particularmente, a criação de novas atividades produtivas ou de prestação de serviços para quando não existir mais esses royalties.
O momento histórico e a janela de oportunidade para o Brasil se desenvolver e dar um salto educacional e tecnológico, produtivo e exportador, estão dados. Para aproveitá-los bem precisamos mudar radicalmente nossa estrutura tributária e de distribuição de renda, principal ponto de estrangulamento do crescimento do país. Não estou dizendo nenhuma novidade: a concentração de renda e os juros altos, agravados pela sonegação, elisão, renúncia, benefícios e isenções fiscais mal dimensionados, por um sistema tributário perverso e o serviço da dívida pública desenhado para os muito ricos são o câncer do país.
Fonte: Congresso em Foco