Por Cleucio Santos Nunes
Campo Grande (MS) – Na hipótese de efetivação de uma necessária e urgente reforma tributária, devemos enfrentar, primeiramente, o problema da regressividade da matriz de tributação, a fim de transformar o sistema em um regime mais equitativo. Além disso, será necessário atender aos objetivos de erradicação da desigualdade social com responsabilidade fiscal. Para tanto, tenho defendido três pilares sobre os quais a reforma deve se sustentar.
O primeiro pressupõe a restituição dos tributos sobre o consumo para contribuintes de baixa renda, de modo que se cumpra o postulado da capacidade contributiva também sobre essa exação. Assim, é possível se conferir mais pessoalidade aos tributos do consumo, uma vez que a isenção tributária indistinta de determinados produtos básicos poderá beneficiar ricos e pobres, não resolvendo o problema da iniquidade nesse segmento tributário. Para compensar a diminuição da receita decorrente da restituição sobre o consumo, a tributação sobre produtos supérfluos deverá ser majorada, sem prejuízo de outras medidas fiscais compensatórias.
A segunda medida consiste na elevação da faixa de isenção do Imposto de Renda, a fim de que se aumente o potencial de consumo da classe média, o que auxiliará na compensação de eventuais perdas de receitas com a restituição dos tributos sobre o consumo, na medida em que sobrará mais renda para ser destinada no mercado consumidor por essa faixa de contribuintes.
O terceiro fundamento é o que venho chamando de “regra de ouro” da justiça tributária. Defendo que um sistema tributário justo é o que consegue equilibrar cobrança de tributos e os objetivos da república com equidade e responsabilidade fiscais. Assim como a Constituição prevê a proibição de contingenciamento do pagamento do serviço da dívida, deveria também possuir norma que impedisse o contingenciamento de investimentos em programas sociais. Daí porque a reforma tributária deverá incluir na Constituição norma que impeça o corte de recursos fiscais na promoção de direitos sociais básicos, definidos na própria emenda.
Esses pilares de uma reforma tributária justa e equitativa podem ser justificados pelas razões a seguir.
Ultimamente, tem-se ampliado o debate sobre os conceitos de regressividade e progressividade do sistema tributário nacional. Fala-se que um sistema tributário é regressivo se os tributos pesarem mais fortemente sobre quem tem menos renda e menos sobre quem tem mais. A progressividade, por outro lado, consiste em dosar os tributos de acordo com a capacidade contributiva de cada um, devendo contribuir com mais quem tem uma renda maior.
Atrelados a esses termos sobressaem os conceitos de renda e de capacidade contributiva como pontos fundamentais da tributação. Sobre a renda, pode-se dizer que é considerada o único fato utilizado para medir a capacidade do indivíduo de pagar tributos. Assim, há três utilizações para a renda em relação as quais incidirão tributos diferentes: a renda adquirida, tributada pelo Imposto de Renda; a renda acumulada, sobre a qual incidem IPTU, ITR, IPVA, ITCD; e a renda consumida, sujeita aos tributos sobre o consumo (ICMS, IPI, ISS e contribuições).
Com relação ao princípio da capacidade contributiva, trata-se de um vínculo jurídico entre a lei e o contribuinte a determinar a partir de que montante de renda a pessoa terá que pagar tributos. Juntos, os conceitos de renda, capacidade contributiva e progressividade visam alcançar o objetivo moral da tributação, que é evitar a regressividade.
No Brasil, de caso pensado ou não, perdemos essa noção de moralidade tributária. De acordo com estimativas do Ipea, as famílias com rendimentos de até dois salários mínimos comprometem cerca de 53,9% dessa renda com o pagamento de tributos, enquanto quem ganhou acima de 30 salários, apenas 29%. A explicação para essa distorção é conhecida: o país tributa o consumo proporcionalmente mais do que tributa a renda. Assim, uma pessoa que ganhe um salário mínimo (R$ 954) por mês pagará sobre o que consome os mesmos tributos que alguém que receba dez ou cem vezes mais. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), a carga de tributos federais e estaduais sobre o pão francês, o quilo do tomate e do feijão foi de 22,2% e, no litro de leite B, 4,2% (referência: DF/2017). Esse mesmo impacto fiscal será suportado tanto pela renda de R$ 954 quanto pela de R$ 9.540 ou de R$ 954 mil.
Uma teoria de tributação explica porque alguém, mesmo não tendo capacidade contributiva para pagar Imposto de Renda, é obrigado a arcar com tributos sobre o consumo. Trata-se da teoria do sacrifício igual, invocada por Adam Smith e posteriormente reafirmada por John Stuart Mill. Para essa teoria, todos deverão pagar tributos porque se valem de benefícios diretos e indiretos do poder público. Essa teoria se radica em outra, conhecida como teoria da equidade vertical, que, analisada de um ponto de vista moral, deverá indicar que as rendas mais altas deverão suportar uma carga de tributação proporcionalmente maior em relação às mais baixas. Isso porque, diferentemente do que se pensa, as camadas mais ricas da sociedade são mais atendidas com infraestrutura estatal do que as mais pobres. Veja-se, com pequenos exemplos, o seguinte: saneamento básico, água potável, rua asfaltada, iluminação pública, transporte coletivo de fácil acesso e segurança pública são bens sociais que costumam estar presentes nas regiões habitadas por quem certamente ganha mais de um salário mínimo. Sem falar em benefícios como infraestrutura de aeroportos, serviços de consulados no exterior, acesso fácil à internet banda larga, áreas públicas de lazer, parques, ciclovias etc., que geralmente atendem à renda média superior a dez vezes o salário mínimo. Como é possível perceber, ainda que sob uma análise superficial, não são os pobres que mais recebem infraestrutura estatal, embora sejam esses que suportam a maior carga proporcional de tributos sobre suas rendas. Em tempos de eleições, conviria se debater porque invertemos essa expectativa moral da tributação e optamos pela regressividade.
Em parte, isso é explicável pela excessiva incidência de tributos sobre o consumo, mais fáceis de serem arrecadados e com alto potencial financeiro. Ao se tributar muito o consumo, compromete-se fortemente as rendas mais baixas, na medida em que, proporcionalmente às rendas mais altas, sobram menos recursos aos mais pobres para outras necessidades. As rendas mais altas, além de possuírem condições de consumir bens supérfluos — fora, evidentemente, os itens básicos — são capazes de contratar serviços como médico de confiança, plano de saúde, previdência privada e escola particular, todos dedutíveis do Imposto de Renda. Além disso, aos mais ricos, é possível investir ou economizar o excedente de renda, o que não é possível aos mais pobres.
Por exemplo, conforme dados da Receita Federal para 2015, quando se compara o Brasil com os países da OCDE (organização que reúne países que representam um fetiche do desenvolvimento econômico desejável), vê-se que em matéria de tributação sobre o consumo somos recordistas, tributando 15,8% do PIB, ficando atrás apenas da Hungria, que tributa 17,2% do PIB. Com base ainda nessas estatísticas, o Brasil foi o país com a menor carga tributária sobre a renda, 5,9%, contra 29,2% registrada pela Dinamarca. Sobre a propriedade, também se observa que o país está muito aquém dos que mais tributam esse nicho econômico: 1,4% para 4,1% registrados para a França.
Vale lembrar que na tributação sobre o consumo, diferente dos tributos sobre renda e propriedade, é impossível discriminar-se a capacidade contributiva dos contribuintes. Isso porque, quando se compra um produto, nele estão embutidos os tributos. Por isso, o consumidor não possui relação tributária com o Fisco, de modo que, juridicamente, para quem compra, o tributo é custo, e não uma exigência fiscal. O vendedor da mercadoria, por sua vez, tem relação jurídica tributária com a Fazenda Pública, mas sua capacidade contributiva não será medida porque é obrigado a inserir no custo dos produtos o valor dos tributos sobre o consumo. Diferente é a situação dos tributos sobre renda e propriedade em que a capacidade contributiva poderá ser aferida diretamente por meio de alíquotas progressivas, que serão tanto maiores quanto maiores forem a renda e o valor da propriedade.
Por outro lado, tributamos iniquamente nossa sociedade e seguimos selecionando quem recebe os melhores benefícios do Estado, o que agrava o problema. Assim, justiça e equidade tributária são conceitos carentes de uma melhor definição para que saibamos criar metas adequadas ao nosso sistema de tributação.
Os três pilares defendidos acima podem ser um bom início para os debates. Em tempo, antes que se aleguem que tais propostas pertencem a convicções ideológicas, convém frisar que justiça e equidade relacionadas ao bem-estar de todos (de todos mesmo!) fazem parte dos objetivos e compromissos da república, previstos na Constituição Federal. Se passados 30 anos de vigência da atual Carta Magna não conseguimos efetivar esses objetivos plenamente — embora se tenha conseguido avançar em políticas públicas importantes —, nunca é tarde para se fazer justiça, justiça tributária no caso.
Cleucio Santos Nunes é advogado, professor de Direito Tributário, doutor em Direito do Estado, Constituição e Justiça pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Direito Ambiental pela UniSantos e especialista em Direito Tributário pela PUC-SP.