Campo Grande (MS) – A proposta de técnicos do Ministério da Economia para a flexibilização do teto de gastos inseriu o governo Jair Bolsonaro (PL) no debate já em andamento na academia, no mercado financeiro e nas campanhas de presidenciáveis sobre a necessidade de rever a atual regra fiscal. O caminho escolhido, no entanto, não é consenso.
Uma parcela dos economistas critica um arcabouço fiscal que tenha nos indicadores de dívida pública uma referência para determinar o ritmo de crescimento das despesas, como propõe o Tesouro Nacional.
Além disso, há a avaliação de que será necessário um enorme esforço para restabelecer a credibilidade da política fiscal e assegurar que qualquer nova regra seja cumprida sem subterfúgios e dribles.
Como mostrou a Folha, técnicos da equipe econômica pretendem apresentar ao ministro Paulo Guedes (Economia), até o fim do mês, o desenho de uma regra que torna flexível o teto de gastos (hoje corrigido apenas pela inflação), permitindo um crescimento das despesas que corresponda ao IPCA mais um percentual caso o endividamento público fique abaixo de determinado patamar —que poderia ser de 80% do PIB (Produto Interno Bruto).
A dívida bruta está hoje em 78,2% do PIB, indicando que, caso essa seja a referência escolhida e a proposta avance, o novo mandato iniciado em 2023 já poderia ampliar os gastos acima da inflação.
Esse é um ponto-chave para a discussão dos rumos da política fiscal no país. Tanto Bolsonaro quanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), candidato que lidera as pesquisas de intenção de voto, prometem manter o piso de R$ 600 para beneficiários do Auxílio Brasil, hoje previsto para vigorar até o fim de 2022. O desenho atual do teto, porém, não comporta essa mudança.
Há ainda outros gastos represados, como reajustes para servidores públicos (parte das carreiras está com salário congelado desde 2017), investimentos e precatórios (dívidas judiciais que tiveram o pagamento adiado em uma mudança recente no teto).
Por isso, a flexibilização do limite de despesas é dada como certa por muitos economistas e agentes do mercado financeiro, embora a fórmula ainda seja uma incógnita.
Há economistas que defendem uma autorização para gastos extras para 2023, com valor definido, enquanto se discute uma nova regra fiscal estrutural. Essa visão encontra apoio inclusive entre alguns interlocutores da campanha de Lula, embora o ex-presidente tenha falado na derrubada do teto.
Já a proposta dos técnicos do Tesouro mantém o teto e usa o indicador da dívida como referência para permitir uma aceleração dos gastos quando há queda, ou forçar um freio nas despesas quando o endividamento sobe.
Gabriel Leal de Barros, sócio da gestora Ryo Asset e ex-diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado, critica a proposta do governo e afirma que países europeus, há anos adeptos de regras de dívida como principal instrumento de controle da política fiscal, discutem agora o abandono delas diante do diagnóstico de que elas não se mostraram críveis —sobretudo no contexto da pandemia, quando foi necessário expandir gastos.
Um dos problemas desse tipo de regra é que, quando a dívida sobe, ela pode demorar a cair, e isso travaria por mais tempo a execução da política fiscal.
“O que o governo tem poder direto de controle é a despesa, e uma regra crível precisa ser sobre o gasto primário [sem incluir o serviço da dívida pública]”, afirma Barros. Para ele, o modelo da Suécia pode ser uma referência, com um teto geral e limites individuais de crescimento para algumas despesas (como se fossem subtetos). O economista defende que o teto geral seja corrigido pela meta de inflação mais algum porcentual.
Para Caio Megale, economista-chefe da XP Investimentos e ex-assessor no Ministério da Economia, uma regra tendo a dívida como referência seria vantajosa por “mirar no que realmente importa”, que é a trajetória do endividamento do país. No entanto, ele reconhece que a nova norma pode ampliar a complexidade das regras fiscais, uma vez que ela por si só não explicita quais instrumentos serão adotados para atingir o objetivo. “É mais complexo calibrar os gastos para atingir um patamar de dívida, depende também da receita.”
Segundo Megale, há uma demanda reprimida de gastos que pode ser resolvida com um pacote para permitir uma nova expansão de R$ 200 bilhões no ano que vem. “Não tem como fugir do Auxílio Brasil de R$ 600, é até socialmente desejável. Por isso esse novo deslocamento [no teto]”, afirma. A partir de 2024, porém, o teto voltaria a ser corrigido pela inflação, com algumas brechas em caso de crescimento muito significativo na arrecadação. “Não precisa necessariamente ter um crescimento real sistemático da despesa”, avalia.
Um dos criadores da regra do teto, o economista Marcos Mendes, colunista da Folha, diz que a proposta do Tesouro está alinhada a discussões mais recentes sobre regras fiscais e é “tecnicamente boa”, mas faz ressalvas sobre sua execução.
“O diabo mora nos detalhes. Uma boa ideia pode ser mal operacionalizada. É preciso ver a descrição completa de cada proposta para avaliar”, diz. “Num país em que em uma semana muda a regra fiscal, isso abre brecha para algum tipo de manobra ou contabilidade criativa.”
Segundo ele, ao se colocar um indicador de dívida como uma porta de acesso a uma flexibilização do teto, o risco é que haja manobras para manipular esse indicador ou “descontar” despesas, como ocorreu no passado com os limites de gastos com pessoal em estados e municípios, previstos na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e que foram sucessivamente maquiados.
Mendes alerta que isso daria aos políticos condições de burlar as regras sem precisar arcar com o custo político de uma revogação explícita do teto.
Outros economistas críticos de uma regra baseada em indicadores de dívida, ouvidos reservadamente pela reportagem, afirmam que optar por esse caminho seria como tratar os sintomas, mas não a doença. Isso porque o endividamento pode subir por diferentes motivos: queda na arrecadação, alta de gastos, juros elevados ou baixo crescimento.
Além disso, a dívida normalmente cresce em uma recessão e, por vezes, demora a cair. Isso tornaria a regra sugerida pelo Tesouro um fator de reforço do ciclo da economia —contraindo gastos em um momento de desaceleração e permitindo expansão nas fases em que já há crescimento.
Os economistas ouvidos pela Folha ressaltam ainda que qualquer nova regra precisa vir acompanhada de um compromisso firme de que ela será cumprida.
A perda de credibilidade da política fiscal reflete a rapidez e facilidade com que a Constituição vem sendo alterada para permitir mais despesas ao sabor dos desejos políticos.
Nos últimos 17 meses, foram promulgadas quatro emendas constitucionais autorizando a expansão dos gastos —a última delas discutida e aprovada por Câmara e Senado em menos de um mês, abrindo os cofres públicos para despejar até R$ 42 bilhões em auxílios às vésperas da eleição.
Justamente por mexer na legislação máxima do país, uma PEC (proposta de emenda à Constituição) requer quórum qualificado para sua aprovação: 308 dos 513 deputados e 49 dos 81 senadores. Mas essa barreira tem sido vencida com uma facilidade cada vez maior, o que corroeu a blindagem proporcionada por esse instrumento.
“Isso é culpa do Congresso, que destruiu a tecnologia do teto de gastos. Se nem o que está na Constituição Federal está garantido, fica uma incerteza”, avalia Barros. Ele também defende que qualquer mudança na regra de gastos venha acompanhada de uma indicação de reformas, para assegurar uma trajetória sustentável da dívida.
Fonte: Folha de São Paulo