Mudança na reforma permite incidência de tributo sobre tributo

Publicado em: 21 dez 2023

Campo Grande (MS) – Mudanças de última hora na reforma tributária vão manter a incidência de impostos na base de outros impostos pelo menos até 2032 e podem postergar isso até depois da fase de transição no caso do IPI. Uma supressão na votação final pela Câmara dos Deputados criou a possibilidade de que o novo Imposto sobre Valor Agregado (IVA) componha a base de cálculo do ICMS e ISS, algo que até então estaria proibido.

A sugestão partiu da Secretaria Extraordinária do Ministério da Fazenda para a Reforma Tributária, que a considera um “ajuste técnico” para manter a arrecadação dos Estados, municípios e governo federal durante a fase de transição, entre 2027 e 2032. Essa incidência já ocorre hoje e, se fosse eliminada, haveria perda de receitas de 9%. O relator da reforma, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), negou a possibilidade de haver incidência de um imposto sobre outro e afirmou que a medida suaviza a transição para Estados e municípios.

Advogados e economistas, contudo, avaliam que o tema já é questionado no Judiciário, deve provocar novos litígios e pode resultar em aumento da carga tributária.

A mudança feita por Ribeiro na sexta-feira permitirá que União, Estados e municípios cobrem IPI, ICMS e ISS, respectivamente, sobre valores da nova Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substituirá o PIS e Cofins (dois tributos federais).

Ele suprimiu a vedação a que a CBS integre a base de cálculo do ICMS e ISS. Essa proibição explícita constava do texto aprovado em julho na Câmara e em novembro no Senado, mas saiu de forma discreta na versão apresentada sexta-feira. Ficou apenas a proibição de que a CBS e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) integrem a própria base de cálculo, do recém-criado Imposto Seletivo e do PIS/Cofins.

No caso do IPI, já não havia vedação no texto, mas o imposto seria zerado e extinto com a reforma. Agora, será mantido para taxar produtos “que tenham industrialização incentivada na Zona Franca de Manaus”, mas não sejam fabricados na região, de forma a garantir as vantagens competitivas das empresas que se instalaram na cidade. A manutenção do IPI foi a forma encontrada para poder promulgar o texto nesta quarta-feira em consenso com o relator do Senado, Eduardo Braga (MDB), que foi eleito pelo Amazonas.

O fim da vedação à cobrança da CBS e IBS dentro da base de cálculo do ICMS, IPI e ISS passou despercebido na Câmara e não constou do relatório em que Ribeiro explicou as alterações feitas. A oposição protestou contra a divulgação do parecer já durante a sessão, mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), não concordou com os apelos pelo adiamento da matéria.

“Tivemos preocupação com a federação”, afirma Ribeiro, ao defender as mudanças no parecer.

No caso do IPI, a manutenção foi a saída encontrada para evitar alterações na PEC que exigissem nova votação pelo Senado, o que inviabilizaria a promulgação este ano. “Mas garanto: não haverá incidência de um imposto sobre o outro. O acordo é para que o IPI apenas mantenha as vantagens competitivas da Zona Franca de Manaus. Na lei complementar, vamos fazer a regulamentação para impedir isso [incidência].”

Para o tributarista Breno Vasconcelos, sócio do Mannrich Vasconcelos Advogados, o ICMS e o ISS terem saído do texto causa estranhamento porque eles estavam desde o primeiro texto da Câmara. “A Câmara votou o mesmo texto duas vezes. O Senado também. Agora volta para a Câmara e eles tiram ISS e ICMS para aumentar a arrecadação”, diz.

Segundo o advogado, conceitualmente, há um problema na tributação porque o IBS/CBS não é o preço da circulação de mercadoria do ICMS e nem o preço para fins de incidência do ISS e IPI. “A prova de que não é preço é que eu recupero o IBS/CBS que foi pago. Mas para fins de ISS e ICMS vai ser como preço”, afirma. Isso, argumenta, causará um grande potencial de litígios. “Pelo menos durante os quatro anos da transição de ICMS e ISS para IBS vai haver um possível contencioso relativo a tributo na base de tributo.”

Vasconcelos acredita que o tema poderá gerar contencioso se leis que regulamentarem IPI, ICMS e ISS durante a transição tiverem previsão expressa da incidência. “Tributo na base de tributo é uma criação brasileira para arrecadar mais”, afirma.

Está em análise pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) se é válida a incidência de PIS e Cofins na base do ICMS. O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, em 2017, contra o inverso disso e proibiu que o ICMS seja contabilizado na apuração dos valores que devem ser pagos de PIS/Cofins.

O advogado Bruno Checchia, sócio do Bichara Advogados, afirmou que a mudança é “esquisita”. “O IBS e CBS serão calculados para manter a atual arrecadação, só que o ICMS, ISS e IPI vão incidir sobre eles também, então acho que vai haver aumento de tributação”, afirma. Para evitar isso e garantir a manutenção da atual carga tributária, ele defende que a alíquota do IBS/CBS deve ser calculada já considerando que os próprios IBS/CBS comporão a base de cálculo do ICMS/ISS. “Caso contrário, teremos aumento de tributação”, diz. Há risco, alerta, de que essa redação gere novo contencioso na Justiça.

A economista Vanessa Canado, que participou da formulação inicial da proposta de emenda à Constituição (PEC), destacou que há trava contra o aumento da carga tributária e que, após a fase de transição, essa incidência do tributo federal na base de cálculo do imposto estadual e municipal não será mais um problema, mas que não considera a alternativa aprovada agora a melhor. “Sinceramente, não acho uma boa prática, poderia estar fora desde sempre. Vejo como uma manutenção do status quo e não como correção de erro técnico”, diz.

A mudança pegou de surpresa até quem estava acompanhando de muito perto a reforma. Representantes dos Estados e municípios procurados pelo Valor disseram que não pediram a alteração. Ex-secretário da Fazenda do Ceará, o economista e deputado federal Mauro Benevides (PDT-CE) foi alertado pelo Valor sobre a mudança. “É uma mudança profunda, de mérito. Isso me preocupa”, disse. Ele procurou técnicos e o secretário extraordinário para a Reforma Tributária, Bernard Appy, que confirmou o “ajuste técnico”. “Hoje o PIS/Cofins é cobrado dentro da base de cálculo do ICMS e impedir isso durante a transição levaria a perda de arrecadação de 9% a 10% do ICMS, segundo o Appy. Foi uma mudança para preservar a carga tributária dos Estados até 2032”, relatou Benevides.

Procurado, Appy confirmou a conversa com o deputado e ressaltou que, na visão da secretaria, não haverá aumento da carga tributária, apenas a correção de um ajuste para que não haja perda de arrecadação com ICMS, ISS e IPI.

Fonte: Jornal Valor Econômico

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