Evento organizado pelo Ipea e Brics Policy Center reuniu especialistas brasileiros e estrangeiros para tratar de reformas do sistema tributário no mundo
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Brics Policy Center promoveram, nos dias 10 e 11 de abril, um webinário do T20 Brasil, o grupo de engajamento da presidência brasileira do G20 para think tanks e centros de pesquisa. Especialistas de vários países discutiram a reforma do sistema tributário internacional, tema de responsabilidade da força-tarefa 3.4 do T20. O principal consenso é que se faz necessária uma discussão mais ampla sobre o imposto mínimo global como solução para remodelar os fluxos de investimento pelo mundo, sem beneficiar apenas países que funcionem como paraísos fiscais. Outro tópico em pauta foi como a tributação da riqueza internacional pode ser uma arma no combate à desigualdade social.
O encontro ratificou os desafios dos países do G20 e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no combate à evasão fiscal, na melhoria da coerência das regras fiscais internacionais e na garantia de um ambiente fiscal mais transparente. “Reforma tributária e justiça tributária são alguns dos principais tópicos em discussão não apenas no G20, mas em organismos internacionais e outros atores, como organizações da sociedade civil, academia, setor privado e governos. Então, para nós desta força-tarefa, é um privilégio e um prazer estar aqui com vocês nesses dois dias. O principal objetivo desse evento é trocar informações, mas também é muito importante discutir e desenvolver recomendações que serão entregues ao G20 ao final deste ano” disse Ana Saggioro Garcia, do Brics Policy Center e copresidente da força-tarefa 3.0 do T20, sobre reforma da arquitetura financeira internacional.
O primeiro dia do evento abordou discussões acerca do imposto mínimo global e seu impacto nos países em desenvolvimento. Para Abdul Muheet Chowdhary, membro do Subcomitê de Impostos sobre Riqueza do Comitê Fiscal das Nações Unidas (ONU), oficial sênior e líder da South Centre Tax Initiative (SCTI), a evasão fiscal saqueou os países em desenvolvimento por décadas, mas só se tornou um assunto “global” após a crise de 2008, que impactou negativamente países desenvolvidos e deflagrou esquemas tributários danosos, como o Beps (sigla em inglês para “erosão da base tributária e transferência de lucros”).
O Beps é praticado por empresas ou grupos econômicos que se aproveitam de assimetrias e brechas legais dos sistemas tributários para transferir lucros aos países com isenção ou baixa alíquota do imposto de renda empresarial. O mecanismo mais utilizado tem sido o uso de paraísos fiscais que atuam como intermediários de transações entre empresas do mesmo conglomerado multinacional, de tal maneira que elas concentram os lucros nessas subsidiárias artificialmente localizadas em paraísos fiscais. Muitos tratados internacionais de bitributação ainda impedem que um país possa tributar o lucro localizado no exterior de suas empresas nacionais, aumentando o problema. Isso acaba levando uma competição tributária desenfreada com reduções da alíquota do imposto de renda em todos os países do mundo.
Abdul, porém, analisou que o modelo do Pilar 2 prevê um imposto mínimo global de 15%, proposto e organizado pelo OCDE através de um consenso de países dentro de um Comitê Inclusivo. Para ele, os países em desenvolvimento atualmente são obrigados a reduzir seus impostos para atrair investimentos, e o imposto mínimo global não resolveria o impacto do Beps nos países em desenvolvimento, porque a medida dá prioridade para que os próprios paraísos fiscais e os países sedes das empresas multinacionais arrecadem esses novos recursos.
“O objetivo do imposto mínimo global é acabar com transferências de operações logísticas, como empregos, para países em desenvolvimento, eliminando a sua habilidade de usar incentivos fiscais para atrair investimentos”, comentou Abdul. Ele argumenta que os países em desenvolvimento devem participar mais ativamente das negociações da convenção alternativa da reforma do sistema tributário internacional proposto e votado pela ONU. Ele também alertou aos países em desenvolvimento para “se oporem ao princípio do consenso para a tomada de decisões, que, segundo ele, os países desenvolvidos tendem a pressionar”.
Para a diretora do Grupo Intergovernamental do G24 para Assuntos Monetários Internacionais e Desenvolvimento, Iyabo Masha, “esse jogo está sendo jogado com regras estipuladas há muito tempo para modelos econômicos muito mais simples”. Ela defende uma amplitude do diálogo para ajudar na tomada de decisões no futuro. O Pilar 2 “pode ser uma melhoria para muitos países pobres, no entanto, o modelo é muito complexo para os países em desenvolvimento implementarem e não lhes proporcionará receitas suficientes”, disse.
A Convenção da ONU sobre o tema é mais promissora por abordar as preocupações dos países em desenvolvimento em ter voz na definição da agenda fiscal internacional. “É provável que o processo resulte na abordagem de algumas das questões que são importantes para os países em desenvolvimento, por isso, o G-24 apoia esse processo”, acrescentou Masha. Os países em desenvolvimento também querem regras tributárias que sejam simples de implementar, segundo Masha. “Neste sentido, após pressão dos países em desenvolvimento, concordamos com as recentes modificações que aprimoraram o modelo da OCDE”.
Shafik Hebous, diretor-adjunto da Divisão 1 do Departamento de Assuntos Fiscais do Fundo Monetário Internacional (FMI), acredita que um imposto mínimo global geraria conceitualmente menores incentivos para o Beps, pois limitaria a guerra fiscal. Para ele, as multinacionais reagiriam em limitar o uso de paraísos fiscais como intermediários de transações entre empresas do mesmo conglomerado, pois o imposto não recolhido acabaria sendo tributado por outra jurisdição. “A tributação mínima das empresas sob o Pilar 2 beneficiaria muitos países sem afetar negativamente outros, dependendo da forma como os países reagissem às novas regras”.
Hebous também apontou para as conclusões de um documento de trabalho do FMI publicado em março deste ano, em que os países poderiam introduzir ou reformar seus sistemas de imposto de renda de maneira mais eficiente. O imposto mínimo global é bem-vindo e a tributação das multinacionais é um tema importante para a reforma fiscal. “Precisamos continuar trabalhando nisso”, mas uma agenda mais ampla de aumento das receitas fiscais continua importante”, disse.
Quando questionado se haveria uma oportunidade no futuro de rever as regras do Pilar 2 para beneficiar os países em desenvolvimento, Andrew Auerbach, consultor sênior da Divisão de Relações Internacionais e Desenvolvimento do Centro de Política e Administração Tributária da OCDE, disse que todo o trabalho que a entidade realiza normalmente é revisto ao longo dos anos. A OCDE também deve aguardar para ver como as regras funcionam na prática antes de considerar novas alterações.
“Há aqui uma enorme oportunidade para os países em desenvolvimento obterem as novas receitas que eles atualmente não estão recolhendo”, frisou Auerbach. Para ele, mudanças foram introduzidas no modelo da OCDE de forma a beneficiar os países em desenvolvimento, como um mecanismo muito mais simples de preço de transferência dentro do Pilar 2 (chamado de “Montante B”) e a possibilidade de alteração automática dos acordos atuais de bitributação, com a taxação na fonte de certas transações entre afiliadas do mesmo conglomerado multinacional (chamado de “Subject Tax to Rule” – STTR).
Por fim, Pedro Humberto Carvalho, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea e debatedor da mesa destacou a preocupação de todas as entidades representadas em se aumentar a arrecadação dos países em desenvolvimento, atingindo o lucro não tributado localizado em paraísos fiscais. Ele destacou que algumas regras do modelo da OCDE ferem a autonomia fiscal dos países em desenvolvimento, como a proibição de impostos sobre serviços digitais que podem cobrados facilmente na fonte pelos países consumidores.
Pela proposta da OCDE, essas receitas perdidas seriam compensadas com as receitas redistribuídas pelo Pilar 1, “mas o Pilar 1 não atingiu consenso do Comitê Inclusivo pois envolve em redistribuir 25% do lucro consolidado das grandes empresas localizadas sobretudo em países desenvolvidos”, enfatizou. Pedro também destacou, que apesar de ser um grande avanço para países em desenvolvimento, o “Subject Tax to Rule – STTR” tem alíquota limitada em apenas 9%, e uma série de regras e limitações que podem por em cheque a capacidade dos países em desenvolvimento em aplicá-las, e ainda levaria a mais disputas legais entre governos e empresas.
A tributação da riqueza internacional foi o tema dos debates do segundo dia do webinário. De acordo com Felipe Antunes de Oliveira, coordenador-geral de Cooperação Econômica Internacional da Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, a desigualdade está crescendo e a situação é bastante desafiadora por uma perspectiva social. Para ele “a taxação internacional tem um papel importante, pois é a peça-chave que nós temos para acabar com as desigualdades”.
Alexander Klemm, diretor da Divisão 2 do Departamento de Assuntos Fiscais do FMI, apresentou um modelo de como tributar riquezas e concordou que os impostos são a forma mais direta de combater a desigualdade no topo da distribuição. Entre os indicadores apresentados, ele mostra que os ganhos de capital representaram cerca de 60% da renda dos 0,001% mais ricos nos Estados Unidos em 2022. Ele defendeu que a melhor maneira de se distribuir essa riqueza é através da tributação dos ganhos de capital derivado de ativos financeiros de maneira recorrente, e não apenas no resgate, como ocorre na maioria dos países.
José Troya, membro do Comitê de Cooperação Tributária Internacional da ONU e coordenador do Subcomitê de Impostos sobre Riqueza, apresentou o trabalho feito pelo subcomitê nos últimos três anos, destacando que em março de 2025 a ONU publicará um modelo de tributação de riqueza para serem adotados pelos países.
Sarah Perret, chefe do Departamento de Impostos sobre Renda e Propriedade do Centro de Política e Administração Tributária da OCDE, apresentou novas perspectivas para a tributação de riquezas de maneira global. Perret mostrou que existem várias possíveis formas de se tributar riquezas, como taxar dividendos, ganhos de capital ou juros; heranças ou inventários; bens específicos como imóveis e outras propriedades; ou patrimônio líquido. Ela destacou que as rendas de capital são majoritariamente sub-tributadas em países da OCDE ao contrário da renda derivada do trabalho, causando regressividade na tributação no topo da distribuição.
Daniel Loria, diretor da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária e especialista em tributação de ativos financeiros explicou as novas adotadas em 2023 pelo Ministério da Fazenda sobre a tributação dos ganhos de capital de fundos exclusivos ou localizados no exterior (“offshores”). A medida foi considerada exitosa visto o volume de recursos arrecadados e vai na linha do que o FMI defendeu no evento.
Por fim, a debatedora Nathalie Beghin, presidenta da Rede Latinoamericana por Justiça Econômica e Social e representante da sociedade civil destacou o papel da tributação da riqueza para suprir os desafios mundiais da fome e miséria ao redor do mundo e prover uma distribuição mais equitativa de recursos entre indivíduos e países.
Sobre o T20
O T20 reúne centros de pesquisa e é responsável pelo pensamento estratégico do G20, grupo das maiores economias globais, com 19 países-membros e a União Europeia. O comitê do Brasil vai mobilizar think tanks nacionais e estrangeiros para produzir estudos e recomendações durante a presidência brasileira do G20, que começou em 1º de dezembro de 2023.
Comunicação – Ipea