Que Estado Queremos: Entenda a Reforma Administrativa

Publicado em: 11 jun 2021

Campo Grande (MS) – Em setembro de 2020, o governo federal enviou ao Congresso Nacional uma proposta de Reforma Administrativa (PEC 32/2020) com a justificativa de combater “privilégios” do serviço público no Brasil. Sem discussão com a sociedade, que pudesse construir um desenho de reforma necessária aos desafios colocados, não houve apresentação de nenhum estudo técnico que apontasse tais privilégios ou sustentasse a máxima de que o Estado brasileiro é muito grande.

Por isso, a sociedade permanece cheia de dúvidas quanto à proposta, que tem gerado inquietação entre servidores e aqueles que se preocupam com a prestação de serviços públicos de qualidade.

Assim, nos propomos a explicar, em tópicos, os principais pontos dessa reforma:

O QUE É?

  • Proposta de Emenda Constitucional que dispõe sobre regras para os servidores que ingressarem no serviço público após a promulgação da PEC
  • Extingue o Regime Jurídico Único, divide os servidores públicos em quatro classes de acordo com diferentes tipos de vínculos e cria novas possibilidades para a perda de cargo público
  • Retira da competência do Poder Legislativo a criação e extinção de ministérios e órgãos da administração pública
  • Autoriza o Poder Executivo para dispor, por decreto, sobre extinção e transformação de funções ou cargos públicos

FIM DOS PRIVILÉGIOS?

Um estudo feito por Wellington Nunes (UFPR) e José Celso Cardoso Júnior (Ipea) mostra onde estão os privilegiados em termos de remuneração no serviço público federal. Eles usaram uma base de dados produzida pelo Atlas do Estado Brasileiro, a partir da Relação Anual de Informações Sociais, que contém estatísticas relativas aos vínculos de trabalho ativos e permanentes do setor público federal civil brasileiro, nos três poderes, para os anos de 2000, 2005, 2010, 2015 e 2018. Você pode conferir o estudo aqui.

A conclusão a que chegaram é que a remuneração acima do teto do funcionalismo público está muito longe de ser exorbitante. Ficou óbvio que a elite do funcionalismo público federal é fácil de ser encontrada, principalmente no Ministério Público da União, Tribunais Regionais e Superior, na Câmara dos Deputados, no Senado, no Tribunal de Contas da União e no Ministério das Relações Exteriores.

Mas muitas dessas funções não estão incluídas na proposta de Reforma Administrativa apresentada pelo governo. Caso o texto seja aprovado como está, ficam de fora promotores, juízes e parlamentares. O texto traz poucas alterações para a carreira militar, mas concede maior flexibilidade para acumulação de cargos. O que nos leva ao questionamento: será que essa reforma realmente foi pensada para combater privilégios?

O QUE ESSA REFORMA QUER?

Fazer uma Reforma Administrativa no Brasil realmente é necessário, contanto que sirva como um instrumento de melhoria de gestão e dos serviços oferecidos à população brasileira.

O que fica evidente na leitura do texto da PEC 32/2020 é a escassez de vezes em que se usa os termos “gestão pública” e “políticas públicas”. Ou seja, essa Reforma pouco tem a ver com a melhoria dos serviços públicos ou com o aumento da eficiência na gestão.

A Reforma, como foi apresentada, busca reduzir o Estado e transformá-lo em coadjuvante no provimento de serviços essenciais à população. Tais serviços (água, luz e saneamento básico, por exemplo) ficarão à mercê do interesse do setor privado.

Temos um caso recente da importância do poder público na garantia de serviços essenciais com a interrupção do fornecimento de energia para o estado do Amapá por vários dias. A situação provocou caos e desespero na população. E isso pode se comum no Brasil, caso a Reforma seja aprovada nesses termos.

Outro registro importante sobre a PEC é que não há estimativa dos cenários do serviço público após a implementação das mudanças propostas. Temas como impactos fiscais ou econômicos, dimensões fundamentais para qualquer mudança no desenho do Estado brasileiro, estão negligenciados no debate público, chamando a atenção para a ausência, mais uma vez, de diagnósticos ou estudos preparatórios.

NOVOS PRINCÍPIOS?

O texto inclui novos princípios (imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade) para o exercício da administração pública. Vale lembrar que princípios similares já existem, o que pode tornar sua interpretação e aplicação mais complexas.

No entanto, o que realmente merece atenção é o último ponto, chamado subsidiariedade, colocando o Estado como mero agente complementar da iniciativa privada. Ou seja, o poder público só poderá agir quando a área em questão não for de interesse do Mercado. Assim, os entes poderão firmar instrumentos de cooperação entre órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares.  

COMO FICAM OS CARGOS?

A Reforma visa criar dois tipos de cargos, por tempo indeterminado e cargo típico de Estado: 

  • Cargo por prazo indeterminado: funções sem direito à estabilidade 

→ Seu ingresso se dá por meio de concurso público

→ Estabelece vínculo precário de experiência (no mínimo 1 ano). No final, somente os mais bem avaliados serão efetivados

→  Possibilidade de desligamento (estabelece mais hipóteses legais de desligamento do que as que já existem atualmente (sentença judicial, infração disciplinar, desempenho insuficiente)

  • Carreira típica de Estado: funções essenciais e estratégicas (Segurança Pública, Auditor, MP, Advocacia Pública, Magistratura, Diplomacia etc)

→ Ingresso por concurso público

→ Estabelece período de experiência de, no mínimo, dois anos. Ao final, somente os mais bem avaliados serão efetivados

→ Veda redução de jornada e remuneração para os cargos típicos de Estado

→ Concede estabilidade após três anos (dois anos de experiência + um ano de exercício efetivo)

→  Estabelece a perda do cargo em decisão transitada em julgado ou por órgão judicial colegiado; ou mediante avaliação periódica de desempenho; (Atualmente a Constituição Federal prevê que o servidor público estável perderá o cargo apenas em virtude de sentença judicial transitada em julgado)

O texto também cria duas novas possibilidades de vínculo com ingresso por meio de processo simplificado. São eles:

  1. Cargo por prazo determinado, contratados para serviços temporários
  2. Cargo de liderança e assessoramento, destinado às funções estratégicas, gerenciais ou técnicas

QUAL A IMPORTÂNCIA DA ESTABILIDADE?

A estabilidade existe não como privilégio, mas para impedir que cargos (sobretudo técnicos) fiquem à mercê das mudanças dos mandatos políticos e que haja nepotismo. Com o fim da estabilidade e a transferência de funções técnicas e gerenciais a servidores que não são de carreira, as chances de impacto negativo no andamento de processos e serviços é imensa, o que gerará também, é claro, uma perda significativa de qualidade no serviço prestado ao cidadão.

FIM DE BENEFÍCIOS

O serviço público é muito desigual e heterogêneo. Há diferenças entre os Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário e entre entes federados – União, estados e municípios.

A PEC 32/2020 cria algumas regras gerais para “enquadrar” algumas minorias que mantém alguns tipos de benefícios que já foram eliminados para a maioria do serviço público.

Por exemplo, não há férias superiores a 30 dias por ano no Executivo e no Legislativo, mas é a realidade no Poder Judiciário e Ministério Público. O mesmo vale para o adicional por tempo de serviço, criação de parcelas indenizatórias e auxílios retroativos.


A PEC prevê que nenhum servidor poderá ter:


→ férias superiores a 30 dias/ano


→ adicional por tempo de serviço


→ aumentos retroativos


→ licença-prêmio ou qualquer licença decorrente de tempo de serviço, ressalvada a licença capacitação


→ redução de jornada sem redução de remuneração, com exceção de motivos de saúde – não é uma regra geral no serviço público, em geral são resultados de acordos coletivos


→ aposentadoria compulsória como punição – é uma regra válida apenas para o Poder Judiciário e Ministério Público


→ adicional ou indenização por substituição não efetiva


→ progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço


→ parcelas indenizatórias sem previsão legal

→ incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções


*Vale pontuar aqui que o adicional por tempo de serviço e a incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções já estão extintos no governo federal.

AMPLIAÇÃO DOS PODERES DO PRESIDENTE

Um dos pontos que mais vem gerando discussão na proposta de Reforma Administrativa é a chamada “ampliação do artigo 84” da Constituição Federal, que trata das atribuições do Presidente da República.

As mudanças previstas na PEC permitem que o presidente possa dispor, por meio de decreto, ou seja, sem a necessidade de lei, sobre extinção ou criação de cargos e funções, de Ministérios, de autarquias etc. 

A justificativa é que o presidente fica mais “à vontade” para “enxugar a máquina pública”. No entanto, essa iniciativa retira atribuições do Poder Legislativo e as transfere para que o Executivo legisle por meio de decretos, o que, mais uma vez, coloca o Estado brasileiro à mercê da política.

QUAIS OS PRÓXIMOS PASSOS DA PEC?

Na Câmara, a PEC precisa de quórum qualificado para sua aprovação, ou seja, no mínimo,  308 votos favoráveis dos 513 deputados, em dois turnos. Depois, o texto segue para o Senado Federal, onde precisará de 49 votos, também em dois turnos. Caso a PEC que saiu da Câmara não tenha sido alterada pelo Senado, o texto é promulgado em sessão no Congresso pelo Presidente da República e entra, então, em vigor. Caso seja alterada, volta para Câmara.

Fonte: Que Estado Queremos

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