A luta pela credibilidade fiscal em 2023

Publicado em: 19 out 2022

Campo Grande (MS) – Coordenar as expectativas sobre as contas públicas será um dos primeiros grandes desafios do próximo governo. Além de definir o montante da licença para elevar gastos em 2023, será preciso desenhar uma nova regra fiscal que assegure uma trajetória confiável de estabilização e queda da dívida pública como proporção do PIB ao longo do tempo. Se for bem sucedido nessa tarefa, quem vencer as eleições neste ano reduzirá incertezas importantes, num ano a ser marcado pelo impacto pleno do ciclo de alta da Selic sobre a atividade e por um cenário externo mais adverso, com juros mais elevados no mundo desenvolvido e o risco de uma recessão global.

Ex-secretário do Tesouro nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, Mansueto Almeida avalia que o país tem como se destacar no ambiente complicado que se desenha para os emergentes em 2023, desde que mostre sinais “de responsabilidade fiscal e compromisso com as reformas, como a tributária”. Na semana passada, Mansueto esteve em Nova York para reuniões com investidores. Segundo ele, todos olham com “curiosidade” para dois emergentes – o México, pela proximidade com os EUA, e o Brasil.

Definição de nova âncora para as contas públicas será essencial

“No caso do Brasil, os dados fiscais de 2021 e 2022, de resultado primário [que exclui gastos com juros] e dívida pública, de crescimento do PIB e do mercado de trabalho foram muito melhores do que todo mundo esperava”, diz ele, hoje economista-chefe do BTG Pactual. Além disso, acrescenta Mansueto, o país tem um déficit em conta corrente baixo e houve um aumento forte do investimento direto estrangeiro, que foi de US$ 46 bilhões em 2021 e deve atingir US$ 80 bilhões em 2022. A primeira tarefa no campo fiscal para 2023 será definir o tamanho da licença para aumentar gastos.

O principal é a elevação das despesas para custear a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600, o que exige R$ 52 bilhões a mais do que os R$ 105,7 bilhões reservados no projeto de lei orçamentária anual (PLOA) de 2023 para pagar um benefício de valor médio de R$ 405. Há estimativas de que a licença total poderá ficar entre R$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões, a depender do que for incluído, como um eventual reajuste dos salários do funcionalismo.

Mansueto diz que, “pela regras atuais, o crescimento do teto de gastos no próximo ano será um pouco acima de R$ 100 bilhões”. Para ele, será um exagero se, além desse valor, for aberto um espaço adicional de R$ 150 bilhões no ano que vem, sem contar que poderia ser perigoso pelo efeito na inflação. “Acho que o mercado aceitaria bem um ‘waiver’ [a licença mais despesas] pequeno, de R$ 50 bilhões a 60 bilhões para acomodar o Auxílio Brasil, junto com uma nova regra fiscal”, diz Mansueto. “E, se o ‘waiver’ for muito grande, podemos ter a política fiscal trabalhando contra a política monetária”, afirma Mansueto, lembrando que os juros já estão elevados para combater a inflação. Se os gastos públicos aumentarem muito em 2023, o Banco Central (BC) pode atrasar o início do ciclo de queda da Selic, um movimento que pode eventualmente começar no segundo trimestre do ano que vem. Taxas altas por mais tempo afetariam o ritmo de crescimento da economia, além de elevar o custo fiscal, por engordar os gastos com juros.

Mansueto cita ainda a incerteza em relação às despesas com pessoal da União. A expectativa é que haverá algum aumento de gastos com o funcionalismo em 2023, após o governo segurar esses dispêndios nos últimos anos, ao não conceder reajustes lineares aos servidores. “Mas o ideal é que seja um aumento parcelado, que não reverta totalmente a economia de 0,8 ponto do PIB que o governo conseguiu de 2018 a 2022”, diz Mansueto. Em 2018, os gastos com pessoal da União eram de 4,3% do PIB; neste ano, devem ficar em 3,5% do PIB. A redução do número de funcionários públicos federais da ativa a partir de 2017 também ajudou nesse recuo.

Ele menciona como exemplo o ajuste realizado por Paulo Hartung nas contas do governo do Espírito Santo entre 2015 e 2018. O ex-governador capixaba passou três anos sem reajustar os salários do funcionalismo e, quando voltou a dar aumento, não fez a compensação integral dos três anos anteriores, segundo Mansueto. “Assim, o Estado ficou com uma folha de pessoal mais baixa, teve dinheiro para pagar as contas em dia e ainda fazer investimentos”, diz ele. “No fim do governo Temer, o Espírito Santo era o único Estado com nota ‘A’”, afirma Mansueto, para quem o desafio é fazer algo parecido no âmbito federal, além da tentativa de aprovar uma reforma administrativa.

Do ponto de vista estrutural, a grande tarefa será a definição de uma nova regra fiscal, depois que a credibilidade do teto de gastos foi solapada por diversas manobras para driblá-lo. Mansueto nota que, em 2023, o país voltará a ter déficit primário – o BTG Pactual, por exemplo, projeta um rombo de 0,4% do PIB nas contas do setor público consolidado no ano que vem e um superávit de 1,3% do PIB neste ano. “Mostrar como vamos transformar um déficit em superávit primário recorrente para pelo menos estabilizar a dívida/PIB no fim do proximo governo seria importante”, afirma ele. Para Mansueto, além de uma regra fiscal crível e que indique uma trajetória sustentável para a dívida pública, também é fundamental que o próximo governo deixe claro o compromisso com a agenda ambiental e normas ESG (a sigla em inglês para práticas ambientais, sociais e de governança) e com a agenda de reformas, como a tributária.

Com sinais de responsabilidade fiscal e de que há intenção de avançar nas reformas, o Brasil pode se sobressair entre os emergentes, diz Mansueto. Para ele, o mundo de maior risco geopolítico entre EUA e China não deve afetar muito o Brasil – os dois países “já são os nossos principais parceiros comerciais, e isso deve continuar”, avalia.

O ex-secretário do Tesouro cita ainda outro fator positivo para o Brasil. Segundo ele, há “um crescimento contratado em infraestrutura com as concessões que já ocorreram, de cerca de 0,7% do PIB por ano”, considerando um horizonte de quatro a cinco anos, com fonte de financiamento privada, via mercado de capitais. Se o próximo governo souber coordenar as expectativas em relação às contas públicas, a atividade econômica poderá voltar a ganhar fôlego na segunda metade do ano que vem e especialmente a partir de 2024. A luta para assegurar a credibilidade fiscal do próximo governo, porém, começará a ser travada ainda neste ano, após o segundo turno das eleições, quando o vencedor deverá enfim divulgar mais detalhes do que pretende fazer com as contas do governo.

Fonte: Valor Econômico

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