Um novo paradigma na relação fisco-sociedade

Publicado em: 08 abr 2019

Por Gigliola Decarli

Campo Grande (MS) – O tradicional relacionamento entre fisco e sociedade lembra a relação entre os gêmeos Pedro e Paulo, da obra “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis. O clima de animosidade que sempre regeu as relações no âmbito da administração tributária não chega ao extremo dos duelos físicos realizados pelas personagens, mas é regido por tensão e antagonismo constante (PORTO, 2016:13). Essa relação desde os primórdios é marcada por postura repressora do órgão estatal em face do responsável pelo recolhimento dos tributos. Analisando-se a história, vislumbra-se que essa atividade tributária marcada por arbitrariedade e abusos favoreceu o surgimento de revoltas, como a Revolução Francesa e a Boston Tea Party, nos Estados Unidos. 

Indaga-se, então, se esse perfil de relacionamento no âmbito da administração tributária é compatível com a ordem constitucional vigente. Não parece ter sido este o direcionamento que o legislador constituinte pretendeu ao estabelecer um rol amplo de direitos e garantias individuais aos contribuintes e ao elencar um rol de princípios e limitações ao poder de tributar. 

O modelo tradicional sobre o comportamento dos contribuintes foi desenvolvido por Alligham e Sandmo, os quais defenderam, com base na teoria da economia do crime de Becker, que a decisão pelo pagamento ou não dos impostos decorreria de cálculos realizados em face tanto da possibilidade de detecção, como do valor da eventual penalidade a ser aplicada em caso de inadimplência. Por esse raciocínio, a obediência às regras fiscais aumentaria na mesma proporção em que se elevaria a gravidade e extensão do castigo por descumprimento delas. Sendo assim, a melhor estratégia a ser tomada pela Administração Tributária com vistas a aprimorar o pagamento de tributos seria reforçar o nível de detecção das condutas ilícitas e de severidade das sanções, o que poderia ferir direitos e garantias dos contribuintes (XAVIER, 2012). 

As relações sociais são dinâmicas e em face desse dinamismo é necessário que a regulamentação dessas mesmas relações sociais se aperfeiçoe, de modo a acompanhar as evoluções sociais. Nesse contexto também a função do estado se altera. Inicialmente, como organização voltada a atender aos interesses da Coroa, da Metrópole. Em um segundo momento como agente central das políticas de desenvolvimento, de privilégio ao pensamento keynesiano de intervenção estatal na economia, de vigência da teoria da dependência. Em momentos mais recentes com características de estado mínimo, de adoção da teoria neoliberal, pós “Consenso de Washington”. Modernamente se fala de atuação colaborativa entre Estado e setor privado, com a inserção de valores da administração privada na Administração Pública, no que tem se denominado “Nova Gestão Pública” (XAVIER, 2012). 

Essa ideia advém do chamado consensualismo, de um novo modelo de gestão pública, por meio da participação popular na gestão. Daí o caráter colaborativo, e também a necessidade de construção de canais eficientes de escuta da população e controle das políticas públicas. O particular é visto não mais como mero “consumidor” dos serviços públicos, mas como formulador e desfrutador das próprias iniciativas. 

Esse novo modelo de estado é denominado Novo Estado Desenvolvimentista (NED), modelo em que se busca um novo perfil de relacionamento com o particular. É justamente nesse novo paradigma de relacionamento que se inserem diversas iniciativas que vem sendo adotadas pelas Administrações Tributárias dos mais diversos níveis, como o programa “nos conformes”, adotado em São Paulo, o programa “pró-conformidade”, adotado pela Receita Federal do Brasil, e a implementação do auto de cientificação no estado de Mato Grosso do Sul. 

É pelo estímulo à denominada cidadania fiscal que o dever fundamental de pagar tributos se aperfeiçoa. A cidadania pode ser analisada na perspectiva jurídica e fiscal. Sob a ótica jurídica consiste, no conceito clássico trazido por Hannah Arendt, no direito a ter direitos, que é ampliado pelos doutrinadores modernos, incluindo a participação do cidadão na vida do estado, sendo então um status do ser humano, um direito fundamental das pessoas (NALINI, 2004). Já na ótica fiscal, a cidadania, ou seja, “o direito a ter direitos”, se concretiza no comprometimento com o bem de todos, colocando-se o cidadão como figura central do Direito Tributário. Quando o contribuinte é posto como “pilar de sustentação do Estado Constitucional de Direito, o custeio dos direitos fundamentais é um compromisso e um dever de cidadania” (PORTO, 2016: 103). 

A relação existente entre um dos braços do Estado, qual seja, a Administração Tributária, mais conhecida como Fisco, e os administrados, geralmente chamados de contribuintes, afeta um dever fundamental da pessoa humana que é o dever de pagar tributos, afetando, com isso, a cidadania fiscal. É necessário, então, a superação do direito tributário focado única e exclusivamente no tributo. É preciso uma visão antropocêntrica, em que o cidadão é alçado a agente central. 

É justamente essa mudança de paradigma, baseado no modelo de gestão pública adotado no NED, em que se busca um caráter colaborativo e o particular como agente central das relações tributárias, que deve ser o objetivo de administração tributária moderna, o que já vem sendo feito nos países desenvolvidos. Estudos realizados no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) demonstram que a atuação dos Fiscos pautada por um elevado índice de autuações enseja dívida ativa com alto custo, em face da inadimplência no recebimento do chamado passivo tributário (COELHO, 2017). Mais recentemente, ao se analisar evasão tributária e eficiência fiscal, verificou-se que o uso prioritário de penalidades para inibir a desobediência pode conduzir a uma redução do cumprimento voluntário das obrigações tributárias, assim como a aversão social às determinações do Estado. A Administração Tributária não deve enfatizar apenas a punição, mas, ao contrário, deve encarar o contribuinte como um cliente demandante pelos serviços, já que, além do medo de sofrer sanção, outras variáveis são consideradas na decisão de pagar tributos, tais como as normas sociais. 

O modo como o sistema tributário é administrado afeta o rendimento, incidência e eficiência. Uma administração fiscal injusta provocará o descrédito no sistema e a fraqueza da legitimidade do governo. A forma, portanto, como a tributação se estrutura afeta o grau de aceitação ao dever de recolher tributos e o dever de cidadania. É por essa razão que a participação do particular nas ações e políticas do Estado se faz necessária, pois “(…), o sentimento sobre o destino dos recursos influi decisivamente na adesão social do dever de recolher tributos” (CARDOSO, 2014: 166). 

É importante, portanto, que a Administração mantenha um relacionamento mais estreito com os contribuintes, pautado na confiança, deixando de considerá-los tão somente como potenciais criminosos. James Alm propõe, dessa forma, que além dos antigos instrumentos de estímulo, tais como aplicação de penalidades e alto nível de detecção de infrações, o Fisco se valha de mecanismos voltados a influenciar a ética dos contribuintes, a fim de aumentar o cumprimento voluntário das obrigações tributárias (XAVIER, 2012). 

A teoria proposta por Alm propõe a adoção de novo paradigma na relação fisco-contribuinte e sociedade, paradigma este caracterizado pelos padrões da confiança, do serviço e, somente quando necessário, da coação. O Paradigma do Serviço consiste em orientar adequadamente o contribuinte no correto cumprimento das obrigações principais e acessórias, orientações estas prestadas de modo direto, pela publicação de instruções normativas ou atos assemelhados, ou indireto, pela divulgação dos atos internos e decisões proferidas na esfera administrativa (julgamentos e respostas a consultas tributárias). O Paradigma da Confiança, por sua vez, consiste em ações que estimulam o adimplemento espontâneo das obrigações tributárias e o tratamento isonômico aos contribuintes que se encontram em situação equânime. Por fim, o Paradigma da Coação consiste em envidar esforços em caráter direcionado aos contribuintes que efetivamente atuam em desconformidade com a norma tributária, atuando em concorrência desleal com os demais contribuintes que agem em conformidade (XAVIER, 2012). 

Esse novo perfil de relação obrigacional tributária, pautado nessa colaboração e consensualismo, tem influência direta no recolhimento dos tributos, por ser corolário do dever fundamental de recolher tributos. Nesse novo modelo de relacionamento, todos devem ser capazes de responsabilizar a todos e cada organização possa ser responsabilizada pelos indivíduos que dela participam. Por isso cidadania e por isso fiscal, que permita ao contribuinte condição singular dentro da sociedade, de alguém comprometido com o custeio dos direitos fundamentais por um lado, mas pelo gozo dos direitos fundamentais que lhe são inerentes, por outro. 

Apesar de parecer ideia nova, essa atuação colaborativa e consensual nada mais é que um aperfeiçoamento dado ao instituto da extrafiscalidade, especialmente quando se utilizam as normas tributárias indutoras de comportamento. O que muda agora é o fato de se integrar o particular na construção das políticas públicas voltadas à indução de condutas, o que novamente nos leva à necessidade de se promover a cidadania fiscal (MARINS, 2011). 

Há muito ainda a ser feito em face desse momento de transição pelo qual passa a administração pública no Novo Estado Desenvolvimentista (NED), sendo necessários esforços para a construção de instituições e políticas públicas baseados nesse novo modelo de gestão pública colaborativa, as quais incluiriam, dentro de um novo paradigma de relação fisco-sociedade (i) sistemas organizados de compartilhamento de informações público-privadas e (ii) cooperação público-privada na construção de regimes regulatórios que incentivem a competição global e a eficiência doméstica (XAVIER, 2012). 

Os programas em andamento em São Paulo, Mato Grosso do Sul e na Receita Federal ainda possuem muitos aperfeiçoamentos que se farão necessários conforme sejam implementados e maturados, mas esse ajuste faz parte da própria construção desse novo modelo de relação social. 

Não à toa que os Fiscos estaduais têm empregado esforços no sentido de entender esse novo modelo de relacionamento fisco-sociedade, sobre o próprio papel do Fisco na construção. E a Febrafite posiciona-se na vanguarda da busca da cidadania fiscal, com a escolha como tema central do novo paradigma da relação fisco-sociedade para nortear os debates do 4º Congresso Luso-Brasileiro de Auditores Fiscais e Aduaneiros, 12º Congresso Nacional e 7º Internacional da Federação, que acontecem nos dias 16 a 19 de junho deste ano, na capital paulista. Vamos juntos debater e apresentar propostas para um modelo tributário pautado pelo trinômio confiança-serviço-combate à sonegação. 

 

Referências Bibliográficas 

CARDOSO, Alessandro Mendes. O dever fundamental de recolher tributos no estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. 

COELHO, Isaias. La cobranza administrativa como mecanismo efectivo de incremento de recaudo. Disponível em: . Acesso em 10 de agosto de 2017. 

CCIF. Custos de conformidade à tributação no Brasil. Disponível em: . Acesso em 10 de agosto de 2017. 

De SANTI, Eurico Marcos Diniz. Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade. Exercício do controle social rumo à cidadania fiscal. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: Fiscosoft, 2014. 

MARINS, James e TEODOROVICZ, Jeferson. Rumo à Extrafiscalidade Socioambiental. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional. 2011 

NALINI, José Renato (org. Jaime Pinsky). Práticas de Cidadania. São Paulo: Contexto, 2004. 

PORTO, Éderson Garin. A colaboração no Direito Tributário: por um novo perfil na relação obrigacional tributária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. 

XAVIER, Lívia Freitas. Certidão de Regularidade Fiscal Federal: Repensando a relação entre fisco e contribuinte a partir do paradigma do serviço e da confiança. Dissertação (mestrado) – Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2012.

 

*Gigliola é Auditora Fiscal da Receita Estadual do Mato Grosso do Sul e Diretora de Estudos Tributários da Febrafite.

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