Por Charles Alcantara
Campo Grande (MS) – A Previdência já passou por sucessivas mudanças (Emendas Constitucionais 19 e 20/1998, 41/2003, 47/2005, entre outras) em distintos governos, sempre sob o signo da sustentabilidade do sistema. No tocante ao setor público, a EC 41/2003 instituiu os Regimes Próprios de Previdência, de caráter contributivo e solidário, e fez a segregação de massas nos estados, com a instituição de novos fundos de previdência capitalizados.
Em razão disso, os novos servidores deixaram de integrar o regime de repartição simples dos estados e passaram a recolher a sua contribuição previdenciária, bem como a contrapartida do estado empregador, para os fundos capitalizados, cuja consequência foi a cessação dos ingressos financeiros dos novos servidores para o regime de repartição simples.
Desprovido de novos ingressos financeiros, o sistema de repartição simples terá que suportar a sobrecarga de despesas por um período não inferior a 40 anos, afetando gravemente a saúde financeira de um sistema que foi erigido sobre a solidariedade intergeracional e a participação do empregador público.
A retórica de políticos irresponsáveis oculta uma verdade sinistra que emergirá daqui a alguns anos, quando da decantação da segregação de massas e da capitalização, com aplicação de recursos unicamente do sistema financeiro: lucros cada vez mais fartos para os bancos e morte por inanição das aposentadorias e pensões.
Se, hoje, o dinheiro dos servidores públicos já está sendo drenado para o sistema financeiro, em face da segregação de massas, com a minuta de proposta de reforma da Previdência, vazada para a imprensa, a barragem de contenção dos rejeitos do sistema financeiro tende a arrebentar sobre as cabeças dos trabalhadores brasileiros.
O ministro da economia, Paulo Guedes, acena com o tiro de misericórdia contra a Previdência Social, ao propor a capitalização integral, com contribuição obrigatória mensal e gestão pelo sistema bancário.
Caso o novo sistema seja aplicado, por exemplo, aos brasileiros nascidos a partir de 2005, que se tornarão contribuintes por volta de 2025, estes se vincularão direta e obrigatoriamente a um fundo de pensão privado, autorizado pelo governo. Assim, a “contribuição” de todos os brasileiros será vertida para o sistema financeiro, numa conta individual, sem qualquer participação financeira do empregador, seja empresa ou governo.
Enquanto isso, a massa de aposentadorias e pensões continua a ser devida por mais algumas décadas a milhões de brasileiros, sem que haja mais qualquer aporte de recursos dos novos trabalhadores, nem das contrapartidas dos governos e das empresas.
Como e quem vai financiar os custos dessa transição, que pode alcançar a cifra de R$ 7 trilhões, valor de um PIB brasileiro? Como serão pagos os benefícios da parcela de repartição simples dos regimes atuais que ainda perdurarão por algumas décadas? Será que o ministro, que é egresso do sistema financeiro, pretende endividar ainda mais o País, tomando empréstimo bancário e submetendo todo o povo brasileiro a sacrifícios ainda maiores, em razão de juros que sugam o orçamento público? Será que o ministro, que é admirador da trágica experiência chilena, quer replicar no Brasil a realidade do Chile, que tem a maior taxa de suicídio da América Latina, puxada especialmente por idosos sem acesso a recursos financeiros?
É falaciosa a versão de que esta é a única alternativa para dar higidez ao sistema e garantir o pagamento de benefícios no futuro. Falaciosa, porque não há descontrole estrutural da despesa. Falaciosa, porque o problema estrutural está no lado da receita e a verdadeira solução, portanto, está no crescimento econômico, na geração de emprego, no combate efetivo à sonegação, no fim das renúncias fiscais, na taxação dos mais ricos e na reestruturação das fontes de financiamento da seguridade social.
Em 2019, as renúncias fiscais da União serão superiores a R$ 350 bilhões, sem contar os valores das renúncias dos Estados, cujo montante é difícil precisar, visto que muitas foram concedidas por meio de atos secretos. Afora a escandalosa isenção fiscal de R$ 1 trilhão concedida pelo governo federal às petroleiras estrangeiras, ao longo de 25 anos.
E o que dizer da sonegação, um crime social que desfalca os cofres públicos em pelo menos R$ 500 bilhões por ano? Somem-se ao desfalque perpetrado pelo poder econômico os R$ 450 bilhões que empresas privadas devem à Previdência Social, conforme apontou a CPI da Previdência no Senado.
Não bastasse a leniência que beneficia sonegadores, a brandura maternal quando se trata de tributar os ricos. Os três maiores bancos privados do País acabaram de distribuir quase R$ 37 bilhões aos seus acionistas, sem um centavo sequer de imposto de renda.
Não é exagero dizer que a reforma de Guedes é genocida, como o foi a reforma implementada no Chile, pela ditadura de Pinochet. Nesse sentido, a luta que se avizinha assume contornos dramáticos. Será preciso tomar as ruas deste país, mais do que por uma boa e justa causa. A luta será pelo direito a uma velhice digna e pela vida, em sentido literal.
* Charles é auditor fiscal, Presidente da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco).