Especialistas analisam os impactos do recente aumento do IPI e do novo preço mínimo sobre os cigarros, um dos produtos mais contrabandeados do país
Um dos produtos mais taxados do país, o cigarro é também o mais contrabandeado, e por isso, o mais apreendido, em volume, pela Receita Federal. Essa correlação entre aumento de impostos e fortalecimento do mercado ilegal poderá ser confirmada novamente já que, no dia 1º de novembro, passou a valer o Decreto nº 12.127/2024, que aumentou em 50% a alíquota de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) – e que já havia aumentado, desde 01 de setembro, o preço mínimo por maço em 30%. “A dobradinha de aumentos atinge não só os consumidores do país como um todo, mas principalmente aqueles de baixa renda, já que a indústria formal se vê obrigada a repassar os aumentos, fazendo com que o preço mínimo médio do produto fique acima de R$ 7”, destaca o economista Pery Shikida, especialista em economia do crime.
“O mercado ilícito ganha força quando é possível atender a uma demanda a um custo inferior ao das opções oferecidas pelos meios legais. Nesse contexto, a tributação faz com que o preço do produto ou serviço oferecido legalmente se torne mais caro comparativamente ao preço do produto ilegal, pois o custo é repassado ao consumidor. Com isso, o produto ilegal, que não paga impostos e não possui controle de qualidade, torna-se economicamente mais atrativo, especialmente no caso de produtos com poucos substitutos disponíveis para o consumidor”, afirma Shikida.
Com o Decreto, a diferença entre os produtos legal e ilegal pode chegar a 40%, já que o cigarro ilícito é ofertado a R$ 5,20. Para especialistas, trata-se de uma vantagem competitiva desleal, que beneficia a criminalidade. Por ser altamente lucrativo e um crime de baixa pena, o contrabando de cigarros é apontado por autoridades como um braço do financiamento de organizações criminosas como facções, milícias e jogo do bicho, com impactos para a segurança pública.
“A elevação da carga tributária incentiva ainda mais o contrabando de cigarros, alimentando organizações criminosas, que frequentemente empregam crianças e adolescentes nas regiões de fronteira, e ainda reduzem a arrecadação tributária e os empregos formais no país”, afirma Shikida.
Oferta e demanda
Há anos, Pery Shikida analisa a mecânica do setor. No estudo “Elasticidades no Mercado de Cigarros no Brasil”, produzido em parceria com os economistas Mario Margarido e Daniel Komesu, divulgado em 2023 pela Revista Práticas de Administração Pública, da Universidade Federal de Santa Maria, ele demonstra a relação entre tributação e ilegalidade no mercado de cigarros.
De acordo com Shikida, o aumento da tributação sobre o cigarro, em 2012, alavancou a participação do produto ilegal no comércio brasileiro – passando de 34%, em 2013, para 54%, em 2018, até o pico histórico de 57% em 2019. Para o especialista, o aumento foi paralelo ao avanço do crime. A sonegação fiscal, nos últimos 11 anos, ficou em R$ 100 bilhões.
Depois de 2016, no entanto, o imposto foi mantido, e o cenário foi a queda da ilegalidade. O índice de 57% em 2019 caiu para 49% em 2020, até chegar a 36% em 2023. Um declínio constante, ano a ano. Os dados são coletados, anualmente, pelo Instituto Ipec e foram considerados na análise de Shikida:
“Há uma relação de causalidade direta e unidirecional entre os preços dos cigarros lícitos e ilícitos. Os dados comprovam, portanto, que o contrabando de cigarros deve ser enfrentado tanto pela ótica da demanda quanto da oferta. As forças de segurança pública são essenciais, mas insuficientes para inibir esse mercado.”
Shikida aponta, ainda, que mesmo com os esforços das autoridades para coibir o contrabando, é impossível impedir a entrada ilegal de produtos em um país que tem mais de 16 mil quilômetros de fronteiras.
“As apreensões representam apenas uma pequena fração, estimada em 5%, do que entra ilegalmente no Brasil, sendo, portanto, que a chance de sucesso do contrabandista é, em média, de 95%”, explica.
O economista também chama a atenção para a necessidade de uma ação mais estratégica do governo brasileiro em relação à regulagem de impostos no setor. Isto pode acontecer em 2 frentes, de acordo com Shikida: por meio da calibragem dos impostos incidentes sobre o cigarro e via Reforma Tributária, com o controle da carga por meio do Imposto Seletivo.
Viés econômico
O tributarista Luiz Gustavo Bichara, que participou ativamente dos debates a respeito da Reforma Tributária no Senado Federal, acredita ser imprescindível enfrentar o mercado ilegal pelo viés econômico.
“A relação entre tributação e mercado ilegal é econômica. Quando há aumento do preço de determinado produto por força não de um maior custo de produção, mas do aumento dos tributos sobre ele incidentes, há um estímulo econômico ao contrabando”, afirma o tributarista.
O projeto de Lei que regulamenta a Reforma Tributária está em tramitação no Senado Federal. É avaliado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), com audiências públicas até a votação em plenário, prevista para a primeira quinzena de dezembro.
Da maneira como chegou à casa, o texto prevê a aplicação de um Imposto Seletivo (IS) que teria como objetivo desestimular o consumo de produtos considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como veículos, aeronaves, extração de petróleo e gás natural, bebidas açucaradas, bebidas alcóolicas e cigarros.
Ainda não se sabe qual será o valor da alíquota do Imposto Seletivo para cada setor, a ser determinada, futuramente, em lei ordinária. A preocupação dos especialistas fica em determinar se haverá ou não aumento de carga tributária.
Para Bichara, um possível aumento de carga tributária sobre os cigarros via IS não diminuirá o consumo e, nem ao menos, aumentará a arrecadação. Ele defende que o aumento de carga contribui para a evasão fiscal. Ainda não se sabe qual será o valor da alíquota do Imposto Seletivo para cada setor, a ser determinada, futuramente, em lei ordinária. Um estudo do Banco Mundial, divulgado em maio deste ano, projetou o IS sobre os cigarros em 250%.
“O maior nível de arrecadação provavelmente não será aquele resultante da maior alíquota, mas de uma carga tributária que, sem prejuízo à arrecadação, não estimule o contrabando”, explica. “Quando houve uma redução da participação do cigarro contrabandeado no mercado nacional, de 57% para 49% em 2020, houve um aumento de 10% na arrecadação de IPI sobre cigarros, com acréscimo de R$ 500 milhões de receita fiscal considerando apenas o imposto federal.”
Com carga entre 71% e 90%, o cigarro é um dos produtos mais taxados do país e mais apreendido, em volume, pela Receita Federal. De acordo com a instituição, entre janeiro e setembro de 2024, foram retirados de circulação 127,2 milhões de maços de cigarros ilegais, avaliados em R$ 136,2 milhões.
Segundo a Pesquisa Ipec (2023), divulgada pelo FNCP, 36% dos cigarros consumidos no Brasil são ilegais, sendo que 27% foram contrabandeados, principalmente do Paraguai, ou falsificados por fábricas clandestinas no Brasil. É a “cópia do contrabando”.
O restante é produzido nacionalmente por empresas devedoras contumazes, que sonegam imposto de forma recorrente, provocando concorrência desleal com o produto legal.
Os especialistas avaliam que, no mercado altamente lucrativo para o crime organizado, é preciso fugir de soluções simplistas. Na visão de Luiz Gustavo Bichara, é preciso bom senso.
“A definição da tributação ideal dos cigarros deve buscar a otimização da arrecadação conjugada, equilibrando arrecadação e reduzindo o incentivo econômico ao contrabando. A maior arrecadação nem sempre vem da maior alíquota, mas de uma carga que, sem prejudicar a arrecadação, não estimule o mercado ilegal, conclui o tributarista.”
Para mais informações, acesse o site contrabandonao.com.br
Alta nos impostos e contrabando em outros setores da economia
A mecânica entre alto imposto e contrabando é vista em outros setores da indústria. É o que mostra o Balanço Anual do Fórum Nacional contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP). Quanto mais alta a taxa de impostos, maior é o contrabando, caso do vestuário e das bebidas. Em um ano, na estimativa do FNCP, o Brasil sofre R$ 441,2 bilhões em prejuízos com o mercado ilegal – somadas perdas da indústria e sonegação fiscal. O montante mais do que quadruplicou em 9 anos. Em 2014, o prejuízo aferido foi de R$ 100 bilhões.