Debate ideológico tem posto sombra no debate argumentativo, calcado em fatos, leis e dados
A falsa percepção de que “se o eleitor não é Lula, então é Bolsonaro, e vice-versa” tem poluído o debate, seja este qual for. Argumentos técnicos têm dado lugar a retóricas e chavões. A consequência é a ausência de um diálogo produtivo e a não compreensão sobre diversas matérias. Neste sentido, é oportuno comentar a recente denúncia feita por Ciro Gomes. Ele alega que houve pagamentos indevidos dos precatórios da União neste governo, sugerindo que pudesse ter havido corrupção. Respeitosamente, divirjo desta possibilidade e argumento tecnicamente.
Antes, porém, vale uma breve reflexão sobre este governo. Com discurso naftalina, que nem o vulnerável quer mais escutar (muito menos os que ingressaram na força de trabalho nos anos 1990), o (des)governo PT tem anunciado políticas desastrosas do passado e agido como se o Brasil tivesse as boas condições macroeconômicas de 2003.
Se há 20 anos havia espaço para o PT interferir na Petrobras, fazer aliança com Cuba, abonar dívidas da Venezuela, declarar que a Vale, uma empresa privada, tem que obedecer ao governo de plantão, fazer política industrial sem abrir a economia; agora, com a governança fiscal temerária e baixa taxa de investimento (16,5% do PIB), a janela para “novos experimentos velhos” foi lacrada. São erros sistemáticos e desnecessários.
Dito isso e deixando para as autoridades analisarem a veracidade da denúncia de Ciro, é importante entender o processo dos precatórios e observar que a probabilidade de ter havido irregularidade é baixa. A ver.
Precatório tem origem no latim deprecare, que significa requisitar algo. Precatório, no caso, é uma dívida reconhecida pelo Poder Público, requisitada por uma pessoa física ou jurídica, que resultou de uma ação judicial definitiva e irreversível, tornando-se, assim, uma decisão judicial transitada em julgado. A partir daí, a Fazenda Pública é obrigada a programar em suas leis orçamentárias seus pagamentos; e o Poder Judiciário é obrigado a negociar/pagar junto ao detentor do precatório. A maioria dos precatórios (para os três entes) diz respeito à dívida com o funcionalismo, ativo e inativo.
Estes precatórios foram crescendo, se acumulando e se tornando um verdadeiro caos fiscal para os chefes dos Executivos. No caso dos subnacionais, a EC federal 62, de 9/12/2009 estabeleceu que estes poderiam entrar em Regime Especial, com prazo definido para pagarem todo o acumulado, quando, então, passaria a vigorar o Regime Normal (o da União), tendo a CF88 estabelecido o montante mínimo anual a ser desembolsado (Art. 97 do ADCT, §2º, inciso I: 1,5% da RCL para os estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e 2% da RCL para estados das regiões Sul e Sudeste).
Já a União, desde 2009 (Art. 100, § 5º, da CF), segue a seguinte regra: o precatório de abril do ano T a abril do ano T+1 deve ser pago no ano T+1 (antes da EC 114/21, o período se estendia de julho do ano T a julho do ano T+1). O ano limite para os subnacionais saírem do Regime Especial é 2029, quando seguirão a regra nacional.
No passado, a incerteza em receber o valor de um precatório era grande. No caso da União, este risco foi reduzido a um ano, em 2009. No caso dos subnacionais, por sua vez, a insegurança persiste, pois, conquanto se tenha um mínimo anual a ser desembolsado, não se sabe ao certo o valor líquido entre os novos precatórios (entradas) e o pagamento do estoque (saída). De qualquer forma, todos os detentores de precatórios sabem que receberão do Estado. A pergunta é quando.
Neste contexto de insegurança quanto à data do recebimento, um detentor de uma dívida pode querer vendê-la hoje com deságio, sendo esta uma decisão privada e de livre arbítrio. Há dois fatores que o levam a fazer isso. O primeiro, é a incerteza sobre o tempo para recebê-lo. O segundo, é que, mesmo sabendo o ano de recebimento, este detentor não quer esperar e prefere vender hoje para uma terceira parte.
O mercado (privado) secundário de precatório, assim, existe há muito tempo e em todos os entes. Não é ilegal e nem imoral. Em Goiás, por exemplo, quando o governo em 2021 pagou em três anos 25 anos de precatórios, faltando apenas 1 ano para o estado sair do Regime Especial, o mercado secundário praticamente acabou.
Em 2022, o valor dos precatórios da União cresceu consideravelmente, o que fez o Executivo encaminhar uma PEC ao Congresso, alterando a forma de pagamento da União[1]: em vez de desembolsar em 2022 o pagamento completo referente ao ano de 2022, este seria parcelado em 4 anos, de 2023 a 2026. Se, por um lado, a dedução do valor não pago em 2022 beneficiaria o cálculo do resultado primário de 2022; por outro, prejudicaria os de 2023 a 2026.
Importante notar que, quando a nova regra foi aprovada, o credor não sabia quem venceria as eleições e se a regra do parcelamento se manteria. Mesmo assim, ninguém poderia detê-lo de vender seu título no mercado secundário, o que deve ter ocorrido, em decorrência do aumento do prazo para o recebimento.
Em 2023, o novo governo se instalou e decidiu antecipar o pagamento de dito parcelamento. A dúvida que Ciro Gomes coloca é acerca da motivação do governo PT ter feito essa antecipação, indicando que poucos bancos teriam se beneficiando e imputando a possiblidade de ter havido uma ação incorreta da Administração Pública. Como? É possível que bancos (e escritórios de advocacia) tenham se aproveitado desta oportunidade no mercado secundário, mas qual lei teria sido infringida?
Uma motivação razoável (e meritória) para este governo ter antecipado, dentre outras possibilidades, é que seria uma forma do Estado pagar algo que deveria ter pagado em 2022 e, concomitantemente, de não haver contaminação na margem fiscal no governo em questão.
Além disso, quem operacionaliza o orçamento e executa o pagamento são servidores públicos de carreira da Fazenda e da Justiça, que dificilmente atuarão ao arrepio da lei, pois sabem que há órgãos de controle, como o TCU, ativos. Governos e seus partidos passam, mas os servidores permanecem, exercendo suas funções com seriedade.
Em suma, o debate ideológico tem posto sombra no debate argumentativo, calcado em fatos, leis e dados. Neste sentido, ainda que este governo PT esteja fazendo uma política econômica questionável, a denúncia parece não ter fundamento. A ver o que as autoridades dizem.
[1] Em 16/12/21, foi promulgada a EC nº 114/2021, que cria um teto para o pagamento dos precatórios da União, que durará até o fim d2 2026 (art. 107-A, caput, ADCT).
CRISTIANE ALKMIN JUNQUEIRA SCHMIDT – Mestre e doutora em economia pela EPGE/FGV, Visiting Scholar por Columbia/NY, consultora e professora da FGV. Foi secretária-adjunta da SEAE/MF, conselheira do Cade e secretária de Economia de Goiás. Colunista do Instituto Millenium e da Conjuntura Econômica, e diretora acadêmica do ABDE (Associação Brasileira de Direito e Economia)
Fonte: JOTA