Campo Grande (MS) – Vários países em escalas diferentes sofreram e estão sofrendo com a pandemia de Covid-19. O Brasil, no entanto, tem um sofrimento diferenciado em relação aos demais, pois já vivenciava uma crise sanitária intensa, decorrente de medidas que incidem sobre seu sistema de saúde. A avaliação é do médico infectologista Rivaldo Venâncio, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e pesquisador associado do CEE-Fiocruz, nesta entrevista para o blog do Centro. “Já passávamos por uma redução drástica da rede de atenção primária, com o congestionamento da rede de urgência e emergência, sobretudo nas regiões metropolitanas e com o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde”, observa.
Para o pesquisador, a chegada da Covid-19 no Brasil evidencia esse cenário prévio e o agrava. “Temos uma verdadeira crise humanitária vivida pelo Brasil, que infelizmente, ao que tudo leva a crer, tenderá a piorar nas próximas semanas e no próximo mês”.
O pesquisador destaca, ainda, que a subnotificação de casos de Covid-19, que dificulta uma maior clareza sobre o comportamento da doença no país, deve-se em grande medida, não à falta de testes, mas à dificuldade de acesso da população à rede de atenção onde esses testes e a amostra clínica possam ser colocados. “Temos dificuldade de entrada na rede assistencial, em especial, na rede de atenção primária, onde esses casos leves e moderados seriam prioritariamente atendidos”.
Confira entrevista abaixo.
Como avalia a chegada e a evolução da Covid-19 no país?
Fomos surpreendidos, o mundo inteiro, com a notícia de um novo vírus na China, posteriormente denominado como Sars-cov-2, causador da doença que ficou conhecida mundialmente como Covid-19. Vários países, em escalas diferentes, sofreram e estão sofrendo com a pandemia. O Brasil tem um sofrimento diferenciado em relação a outros países, em primeiro lugar, porque já tínhamos uma crise sanitária intensa, decorrente de medidas que incidem sobre o sistema de saúde do país, como redução drástica da rede de atenção primária, congestionamento da rede de urgência e emergência, sobretudo nas regiões metropolitanas, subfinanciamento do Sistema Único de Saúde. Tudo isso se agrava com a chegada da Covid-19. Mas o Brasil não enfrentava apenas uma crise sanitária, que foi agravada; tínhamos também uma crise econômica e social, pré-pandemia, com milhões de desempregados e de subempregados e pessoas vivendo em condições sub-humanas. A chegada da Covid-19 traz à tona esse cenário prévio brutal e o agrava. Ou seja, o desemprego e o subemprego tendem a aumentar, a população de rua tende a aumentar. Juntam-se, então, duas importantes crises, uma crise sanitária e uma crise econômica e social, que por sua vez situam-se em uma realidade histórica, de 500 anos, de verdadeiro apartheid social, com vergonhosa desigualdade.
Não temos notícia em pelo menos nos últimos 50 anos, de uma emergência sanitária no país que tenha matado tantos profissionais de saúde, que tenha causado tanto sofrimento, com pessoas morrendo no próprio domicílio, antes de chegarem a uma unidade de saúde. Com a chegada da Covid-19, tem-se uma verdadeira crise humanitária vivida pelo Brasil. Uma crise, que, infelizmente, ao que tudo leva a crer, tenderá a piorar nas próximas.
Sabemos que não existe, ainda, uma vacina contra a Covid-19, e que o único procedimento eficaz no momento é o isolamento social. A Fiocruz posicionou-se recomendando com veemência o lockdown. Como infectologista, como o senhor vê essa medida e por que ela pode ser estendida mesmo que de forma intermitente por um longo período no Brasil?
A Fundação Oswaldo Cruz emitiu um parecer, a pedido do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro em relação ao afastamento social. Essa medida foi formalizada e elaborada a partir das experiências que temos acompanhado sobre os mecanismos de transmissão desse vírus, que é de pessoa a pessoa, com inexistência de uma vacina e também de um tratamento profilático e, mesmo, terapêutico comprovado. Isso nos aponta que a única maneira eficaz de evitar a transmissão do vírus é o afastamento físico entre as pessoas. Para isso, é fundamental reduzir a mobilidade social, o uso do transporte coletivo urbano, geralmente, superlotados. Tomamos essa orientação baseados nos mecanismos de transmissão do vírus, associados a questões como o colapso que vive a rede de saúde do Rio de Janeiro, com quase 90% dos leitos de terapia intensiva na rede do SUS já ocupados. Há pessoas, que aguardam por dias um único leito de terapia intensiva ficar vago. Salvar vidas nessa circunstância é reduzir a transmissão do vírus, o que consequentemente reduz a ocorrência da doença e, com isso, a quantidade de formas graves e a pressão sobre a rede assistencial do estado, aliviando, o sofrimento dos que estão na fila aguardando uma vaga de terapia intensiva.
No entanto, essa medida de restrição à mobilidade física só é efetiva se acompanhada de medidas de proteção social, de oferta de cestas básicas aos que estão desempregados, de tal forma que possam permanecer em suas casas, aderindo a esse clamor pelo afastamento social. O termo lockdown me incomoda, porque é quase que uma transposição para o nosso país de realidades de outros países em que essa medida foi aplicada. Países que não têm o contingente de favelados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Rio Grande do Sul, por exemplo, e que, portanto, não têm essa gigantesca desigualdade social.
Como vê a possibilidade de uma vacina em mais curto prazo?
Todos os estudos sobre uma nova vacina, embora muitos deles promissores, ainda terão um longo percurso pela frente. Os mais otimistas falam em um ano ainda, para que tenhamos uma vacina eficaz segura e acessível ao conjunto da população, disponível para utilização pela rede pública e, claro, pela rede privada também.
Uma das prováveis causas das subnotificações de casos de Covid-19 é a falta de testes em grande escala para teste na população. Como isso pode impactar o cenário epidemiológico em nosso país?
Em todas as emergências sanitárias enfrentamos dificuldades em relação ao teste diagnóstico. No caso da Covid-19 não foi diferente. Cabe salientar que a produção de kits pela Fundação Oswaldo Cruz é, hoje, mais do que suficiente para dar conta da demanda. Na realidade, o gargalo não está na falta do teste em si, mas na falta de uma rede que capte as amostras das pessoas com quadro clínico e as encaminhe ao diagnóstico. Evidentemente, que haverá sempre um contingente subnotificado, e a subnotificação ocorre não somente pela ausência do teste. Por exemplo, nas formas brandas, leves e moderadas da doença, geralmente, a pessoa não procura uma unidade de saúde porque essas estão superlotadas. Acredito que, hoje, nesta última semana do mês de maio, o grande responsável pela subnotificação, é a dificuldade de acesso à rede de atenção onde esses testes e a amostra clínica possam ser colocados. Temos dificuldade de entrada na rede assistencial, em especial, na rede de atenção primária, onde esses casos leves e moderados seriam prioritariamente atendidos.
A produção de kits pela Fundação Oswaldo Cruz é, hoje, mais do que suficiente para dar conta da demanda. Na realidade, o gargalo não na falta do teste em si, mas na falta de uma rede que capte as amostras das pessoas com quadro clínico e encaminhe ao diagnóstico.
A situação dos testes e a subnotificação são, sim, uma realidade, no entanto, para salvar vidas, precisamos ter um suporte para captação dos casos,em especial dos casos de pessoas dos chamados grupos de maior vulnerabilidade, pessoas que tendem pela experiência mundial, a desenvolver as formas mais graves da doença. Estamos tendo dificuldade na estruturação dessa rede. O desafio para nós, para a sociedade como um todo, nessa crise sanitária, é conseguir um nível de organização social capaz de acolher essas pessoas e dar-lhes o tratamento adequado.
Como vê o aprovação pelo Ministério da Saúde do protocolo que prevê o uso da cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento de casos leves da Covid-19?
Não estamos num “Fla-Flu”, num jogo no Maracanã, e sim diante de uma crise sanitária agravada por uma crise social e econômica, que tem gerado uma crise humanitária. O mundo vive uma pandemia, e nós precisamos unir esforços sem clima de disputa de posições. Os níveis governamentais municipal, estadual e federal, as organizações da sociedade civil e as organizações não governamentais, todos, precisam buscar o diálogo, com vistas a uma solução que pelo menos amenize a gravidade da situação. É um chamamento em defesa da vida, um chamamento pela construção de uma rede colaborativa, governamental e não governamental. O clima de disputa em que um vai tentar reafirmar sua posição, colocando a posição do adversário como equivocada, não nos levará a lugar algum, principalmente, do ponto de vista sanitário. (Reprodução CEE Fiocruz)