Reforma tributária e economia digital: nunca o ótimo se tornou tão inimigo do bom

Publicado em: 09 nov 2020

Campo Grande (MS) – O Brasil é a prova viva de que, sem meios efetivos de resoluções de conflitos, prevalece a anarquia fiscal. Nunca antes o ótimo ficou tão distante do bom: o possível do impossível. Entre eles, a utopia e a realidade. E o mais interessante: ambos separam o final feliz da reforma tributária internacional, lançada pela OCDE via projeto BEPS, e o da reforma tributária brasileira, agenda prometida pelo governo e que mantém a sociedade e o mercado em compasso de espera, a bem dizer, há alguns muitos anos.

E a semelhança não é pouca. Tanto em âmbito nacional, quanto em âmbito internacional, temos a polarização entre se manter a soberania/autonomia financeira, ou de readaptá-la via concessões, em prol da realidade inexorável que é sobretudo imposta pela mobilidade e intangibilidade. Em ambas, a necessidade de simplificação dos sistemas, adequada atribuição de competências/alocação da arrecadação e o desenvolvimento de meios de resolução de conflitos que viabilizem os novos modelos, afinal, se o descumprimento se mantiver orgânico, com quebras unilaterais seletivas, de nada adiantará qualquer esforço.

Nesse sentido, propomos os seguintes pontos de atenção e convergência, que valem tanto para a celeuma notadamente presente nas tensões no federalismo brasileiro, e que impedem o avanço de um modelo mais moderno de tributação, quanto em âmbito internacional, guardadas, claro, suas peculiaridades. São eles: (i) um novo modelo de soberania/autonomia fiscal; (ii) a normatização do ¨permitido¨ e do ¨não permitido¨; (iii) meios efetivos de resoluções de conflitos.

Um novo modelo de soberania/autonomia fiscal

Não há dúvidas de que vivemos um grande problema de medo e crise de confiança. Desconfiança entre Instituições, como mostram as relações entre entes políticos e entre estes e a iniciativa privada. E medo do disruptivo, mas, sobretudo, da falta de controle. Milhões de operações são realizadas ao largo do controle estatal, através da fluida, e cada vez mais abrangente, tecnologia. Grandes corporações criam estruturas pulverizadas e a presença física, antes característica marcante da economia tida como tradicional, deixou de ser uma característica, quem dirá inexorável.

Tal realidade atinge em cheio as relações internacionais e nacionais, uma vez que para a possível definição – lembrem-se, o ótimo é inimigo do bom – é preciso se avançar em como reescreveremos as bases e competências tributárias. O risco vem sendo sentido há tempos e não por falta de aviso: ou teremos dupla – quiçá múltipla – tributação, ou teremos a inexistência dela, dois problemas igualmente graves para a preservação do estado fiscal.

Na seara internacional assistimos, comendo pipoca, já que o Brasil não se posicionou formalmente nesse debate – ao menos que se tenha dado publicidade – o choque entre os países europeus, que defendem a tributação das gigantes do vale do silício que comercializam em seus mercados, e os EUA, que defendem a manutenção de modelo absolutamente ultrapassado da tributação internacional, quando, na verdade, isso representa a tentativa de apenas ele, como país, preservar as bases fiscais de suas empresas, mesmo na exploração de mercado consumidor alheio.

Em resposta, os demais países vão, um a um, criando medidas unilaterais ao arrepio de uma pleiteada harmonização para tentar se apropriar das riquezas criadas nessa nova globalização digital.

Internamente, o que vemos é o choque entre a União, absolutamente desmoralizada pela concentração de arrecadação nas contribuições e uma bela dribladora – ao melhor estilo garrincha – do modelo constitucionalmente consagrado de distribuição de receitas fiscais; dos Estados, que assistem ao processo de ¨servicificação¨ da economia, opção, inclusive, materializada pela Lei Complementar nº 157/2016, esquecendo-se de que não temos na Constituição Federal ferramentas de distribuição horizontal e vertical – de baixo para cima – de receitas, e os Municípios, que lutam incansavelmente pela ideia de autonomia financeira como exercício pleno de competências tributárias próprias. Logo, não conseguimos evoluir.

Veja-se que nos dois cenários, internacional e doméstico, não há solução ótima. Não é possível se atender às premissas de todas as partes envolvidas, na medida em que insistem em se manterem focadas apenas nos seus interesses contrapostos; por isso, muitos afirmam como utópico um final feliz para ambas as necessárias reformas.

Desse quadro decorre a seguinte conclusão: ou há um redirecionamento das posições no sentido de se buscar um modelo de tributação mais coerente em sua inteireza, havendo concessões mútuas em prol do consenso, ou as contendas atuais serão mantidas, resultando em uma radical centralização de riqueza nos locais que concentram os principais players de mercado, como atualmente já ocorre. Nesse contexto a fuga dos elementos tributáveis tende a se intensificar pela mobilidade e, com isso, cada vez mais a força dos maiores se imporá sobre os menores.

Temos, portanto, o inverso da concretização da justa distribuição da carga tributária e da necessária equidade entre nações e contribuintes. E, mais do que isso, não teremos um ecossistema econômico que viabilize o desenvolvimento de novos empreendedores, que nascerão massacrados pela sobreposição fiscal, por uma competição tributária nociva, pelo excesso de obrigações acessórias, isto é, por um ambiente absolutamente hostil à sobrevivência de novos negócios.

Logo, como norte ao debate, a solução passa pela superação de conceitos ultrapassados[1], consensualidade quanto à redefinição dos elementos definidores de competência tributária, tais como do estabelecimento permanente digital e concretização da equidade, inclusive se observando a tributação adicional dos lucros excessivos[2]

A normatização do ‘permitido’ e do ‘não permitido’:

Outro passo importante é abrirmos mão de um discurso que ganhou propulsão no mundo todo, mas que só contribui para se conferir a mais plena insegurança jurídica às relações jurídico-tributárias, qual seja, o da interpretação do elemento subjetivo do negócio, ou melhor, do chamado ¨propósito negocial¨ – ¨ou substância¨ – das decisões empresariais. E, para isso, não há qualquer demérito à evolução hermenêutica no campo da tributação, mas a condução ideológica leva a incertezas e rui com o sistema como um todo. Na tributação, pode aquilo que a legislação permite, e não pode o que a legislação veda.

Não há aqui, repita-se, uma tentativa de se retroagir ao pensamento formalista notadamente presente quando da elaboração do CTN. Mas o caso Apple, julgado pelo Tribunal Geral da União Europeia, cujo pano de fundo foi a análise de – não – concessão de state aid, ou vantagem seletiva, por exemplo, demonstra bem e escancara um problema muito observado também em terras brasilis, no âmbito do CARF, em que verificados inúmeros processos fiscais em que o critério de presença física, existência de funcionários e alocação de riscos, foram determinantes para a desconstituição de algum planejamento considerado agressivo. Isto porque, dentre outras acusações da Comissão Europeia, havia críticas às autoridades irlandesas por: “terem alocado incorretamente ativos, funções e riscos nas sedes da ASI e da AOE, embora essas sedes não tivessem presença física ou funcionários[3]”. Note-se: o problema não está em se coibir o abuso, mas de deixar a sua caracterização ao sabor de cada intérprete.

O curioso é que a pandemia de COVID, que trouxe tantos males ao mundo, provou algo: que as instituições podem funcionar remotamente, tornando impossível nos valermos de tais premissas para se aferir validade ou não de um ato empresarial.

Meios efetivos de resoluções de conflitos:

O Brasil é a prova viva de que, sem meios efetivos de resoluções de conflitos, prevalece a anarquia fiscal. Sem um tribunal competente para julgar casos de conflito de competência tributária, tendo o STF como tribunal com múltiplas atribuições acumulando por anos questões sem definição, acaba por prevalecer o descontrole. Veja-se o recente tremor pelo qual atravessou o país quando da publicação da já citada LC 157/2016, em que se tentou operar a mudança de competência do ISS da origem para o destino, mas dessa vez com rápida resposta do STF. Se assim não fosse, e na ausência de um Tribunal competente para julgar conflitos, empresas se veriam obrigadas a declarar e recolher tributos para centenas ou milhares de municípios de uma única vez. E o pior, sem que se pudesse ajuizar uma ação judicial qualquer, pois nenhum juiz estadual poderia processar e julgar uma demanda com centenas de partes de diferentes estados do país.

Temos, então, uma carência que poderia ser facilmente suprida com a criação de um Tribunal com tais competências, ou mesmo o alargamento de competência, com a atribuição judicante para o CONFAZ, por exemplo, que julgaria, tão só, questões envolvendo conflitos de competência entre todo e qualquer ente federativo. Outra medida interessante seria a criação de Câmaras arbitrais para processar e julgar tais questões, cujos árbitros seriam escolhidos pelos entes em conflito.

Retornando ao cenário internacional, fato é, que a OCDE, vide Ação 14, já emitiu mais de 990 recomendações para 45 jurisdições para manutenção de conformidade de elementos de padrão mínimo, tudo isso com vistas a impulsionar mudanças estruturais que viabilizem a redução de conflitos.

O Brasil, por meio da IN nº 1.669/2016, aderiu ao procedimento amigável – MAP, além de ser signatário do Inclusive Framework, dos acordos para troca de informações (Ação 13), mas optou por não aderir ao acordo multilateral (“MLI”), inclusive, no que se refere à meios de solução de conflitos, em que pese a adoção, em tratados bilaterais, cujo pontapé inicial foi a alteração promovida no tratado mantido com a Argentina e adoção nos acordo mais recentes.

À priori, o problema em foco não nos parece residir na adesão – ou não – ao MLI, mas a recusa brasileira em buscar meios efetivos de solução, como a arbitragem, quando configurado litígio entre países, para além das matérias normalmente resolvidas via MAP. O principal ponto já foi indicado neste texto, no que tange à possibilidade de dupla tributação, mas há mais: o litígio entre países não favorece, sob nenhum prisma, a iniciativa privada. Também não compromete, a nosso ver, a proteção das bases tributáveis nacionais, ponto destacado pela corrente que entende ser necessário o posicionamento firme do Brasil em meio aos conflitos internacionais fiscais.

Por qual razão? Pelo fato de que o conflito não solucionado não consolida e valida a posição defendida pelo Brasil no cenário internacional, e leva à resposta da parte que se entende prejudicada, como assistimos recentemente na abertura de investigação pelos EUA, via USTR, Agência de Representação Comercial norte-americana, com base na Seção 301 do Trade Act de 1974, envolvendo o Brasil e outros países que estejam debatendo e tomando medidas para tributação das novas materialidades trazidas pela digitalização da economia.

E mais: além do já exposto, a inexistência de tal mecanismo agrava o quadro de polarização, afastando o consenso em temas de tributação internacional, especialmente em tempos de definição de rateio de competências e receitas tributáveis. O próprio modelo proposto no Pilar 1 (Pilar One)[4], demonstra a possibilidade de, em havendo alinhamento, os países com grande número de consumidores se beneficiarem de receitas hoje não percebidas, como receitas de marketing e uso de dados, integralmente direcionadas aos países-residência. Mas isso depende, frise-se, de consenso.

Conclusão:

Uma das maiores frustrações dos pesquisadores, tanto na análise internacional da digitalização da economia, merecendo aplausos o esforço da OCDE e da Receita Federal do Brasil em ouvir o mercado e a academia, quanto na análise do melhor modelo para a reforma tributária brasileira, com igual postura do Congresso Nacional de abertura de diálogo com a sociedade, tem sido ver quedar sem sucesso as ideias e soluções propostas. Fato é, que temos cenários que apenas suportam o possível e que a solução perpassará, necessariamente, ou pelo consenso, ou pela necessidade. E bem sabemos que nada decidido pela necessidade será, de um jeito ou de outro, justo para todas as partes.

 

FELIPE KERTESZ RENAULT – Associado da Associação Brasileira de Direito Financeiro – ABDF, Sócio do Renault, Zattar, Da Gama e Rodrigues Pires Advogados. Doutor em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ. Coordenador do Observatório de Economia Digital do IBMEC-RJ e Professor do PJT-ABDF.

 

Fonte: JOTA

 

 
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