Deputados já apresentam projetos complementares à revelia do governo, em meio à pressão de setores privados
para que se concretizem, isso vai depender das leis complementares que serão aprovadas. E até hoje não sabemos o teor”, afirma.
“É importante garantir que as coisas boas do nosso ordenamento sejam mantidas e não sejam cooptadas pelo interesse de determinadas indústrias”, prossegue Piscitelli.
Cesta básica
Outro grupo que tem pressionado o Congresso é o setor de ultraprocessados em relação à cesta básica. A reforma prevê que os produtos da cesta estarão sujeitos à alíquota zero do IBS e da CBS, porém caberá à lei complementar a definição dos bens abrangidos.
A Frente Parlamentar da Agropecuária apresentou uma proposta para antecipar a isenção a uma lista de produtos que, na visão dos deputados, devem compor a cesta básica. A ideia é dar poder ao governo federal para reduzir a alíquota do PIS e da Cofins durante a transição para o IBS e a CBS – tributos criados na reforma.
O texto prevê que a cesta básica será composta por “alimentos destinados ao consumo humano” e “alimentos utilizados na industrialização de produtos que se destinam ao consumo humano”. A lista conta com 20 itens, incluindo proteínas, ovos, hortaliças, arroz, feijão e margarina.
Há também produtos que, na visão de especialistas consultados pelo JOTA, podem abrir brecha para a entrada de ultraprocessados, como compostos lácteos, biscoitos e achocolatados.
O texto da FPA expande a cesta prevista no Decreto 11.936, publicado pela Presidência da República em 5 de março no âmbito da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e da Política Nacional de Abastecimento Alimentar, com foco em alimentos minimamente processados. Indo no sentido contrário, a proposta atende a expectativas da indústria dos ultraprocessados e do setor de supermercados, que tentam promover uma cesta básica expandida.
“No que diz respeito aos impostos sobre alimentos, a FPA defende a tributação zero para qualquer tipo de alimento”, afirmou a frente parlamentar no projeto de lei protocolado no dia 27 de março.
Os deputados ainda devem debater o chamado “cashback”, uma forma de devolução de tributos para a população mais pobre. A política está prevista na reforma tributária, mas depende de uma regulamentação para entrar em vigor.
Dentro da Câmara, o deputado federal Luiz Carlos Hauly (Pode-PR) defende adotar a medida para garantir justiça fiscal de forma mais eficiente que a cesta básica isenta.
Para o deputado, ao zerar a alíquota sobre os produtos, toda a população é beneficiada – incluindo a parcela mais rica. Já com o cashback, o deputado defende que apenas a parcela da população registrada no Cadastro Único terá direito ao benefício. A posição, porém, não tem encontrado eco entre os demais parlamentares, segundo o próprio Hauly.
“Mas essa é uma discussão que se tornou irracional nos dias que antecederam a aprovação da PEC. Não tinha como dialogar. Vamos ver se na lei complementar teremos um tempo de debater com racionalidade e transparência, de forma justa e elegante”, diz Hauly.
Para Tathiane Piscitelli, da FGV, a proposta pode ser uma solução complementar à cesta básica isenta, ao invés de substituí-la, desde que tenha como objetivo garantir que a “parcela do meio” não fique desamparada. Esse seria o grupo de pessoas que não estão cadastradas em programas de auxílio social, mas não têm alta renda.
“Se a gente considerar a remuneração média de um professor de ensino infantil ou trabalhadoras domésticas, essas pessoas não estão no Cadastro Único, mas será que elas conseguem suportar um aumento de carga tributária em bens essenciais? E será que justamente isso não levará essas pessoas para a indústria dos ultraprocessados? Faz sentido que uma pessoa que ganha R$ 1.500 por mês tenha uma tributação de quase 30% sobre bem essencial? Esse é o problema”, aponta.
Regimes diferenciados, comitê gestor e processo administrativo fiscal
Outro ponto considerado polêmico por Piscitelli é sobre como equilibrar a neutralidade da reforma tributária com a adoção de regimes diferenciados e as previsões de redução de alíquota.
O texto estabelece que alguns setores contarão com regimes específicos, com alterações de alíquotas e mudanças na base de cálculo. É o caso de planos de saúde, serviços financeiros e operações com imóveis.
Há ainda a previsão de redução de alíquota em 60% em serviços como educação, saúde, medicamentos, produtos de higiene pessoal e alimentos. Caberá à lei complementar definir quais operações vão contar com o benefício.
“No regime especial tivemos a inclusão de muitos serviços e bens que não precisam ou deveriam estar lá”, diz Piscitelli. Para a tributarista, este ponto da regulamentação deverá contar com disputa de narrativas para assegurar um cenário mais vantajoso entre os setores beneficiados.
“Isso tem que ser ponderado com o objetivo da reforma tributária, que é não haver aumento da carga tributária. Na medida que eu favoreço um setor, eu tenho que tirar de outro lugar. Precisamos ver o impacto que isso terá na alíquota média”, avalia.
Já o advogado tributarista Luiz Bichara, sócio do escritório Bichara Advogados e procurador tributário do Conselho Federal da OAB, aponta que o fato de um setor estar na lista de regime diferenciado não garante uma tributação favorável ou neutra.
“Por isso, os setores cuja tributação será definida pelos regimes específicos devem ficar especialmente atentos a essas regras, sob pena de se surpreenderem ao final do processo legislativo com regras ainda mais duras que as atuais”, apontou.
Em relação às mudanças trazidas no processo administrativo fiscal, Piscitelli avalia que o tema não foi pensado junto de uma reforma processual, o que pode criar um entrave nas discussões das novas regras.
“Vamos ter umas questões de conflito porque tem a CBS, um tributo federal, e o IBS, um tributo cuja competência é compartilhada entre Estados, municípios e DF, mas os âmbitos de jurisdição são distintos”, afirma. “Temos questões que precisam ser enfrentadas na perspectiva processual e processual judicial que não foram enfrentadas”, completa.
Comitê gestor e o “destino”
Além das disputas envolvendo atores do setor privado, estados e municípios também acompanham a discussão da regulamentação da reforma tributária. Isso porque um dos “nós” a serem resolvidos é justamente a conceituação do que será o “destino”.
O termo, embora simples, esconde uma disputa por arrecadação que tem o condão de levar Estados e municípios a brigarem entre si. Isso porque a reforma alterou a tributação da origem, ou seja, onde a mercadoria é produzida, para o destino – onde ela será consumida.
A mudança traz dúvidas: se uma empresa com sede no Rio de Janeiro decide comprar um produto que será utilizado por suas filiais em todo o país. Onde se dará o “destino” desses produtos? Na sede que o adquiriu ou na filial que o consumiu?
Para Bichara, a emenda constitucional criou mecanismos para evitar a perda de arrecadação, como a adoção de uma regra de transição e uma espécie de “seguro-receita”, que beneficia entes cuja fatia no bolo esteja caindo gradualmente em função das mudanças.
“A dúvida é saber se a conta realmente fecha”, alertou. Tathiane Piscitelli, por sua vez, aponta que o debate deverá “renovar” os debates judiciais, aumentando o risco de judicialização do tema.
“A ideia, no papel, é boa: vamos tributar no destino porque é onde está o mercado consumidor, e portanto é justo que onde está o mercado consumidor que receba a receita tributária”, explicou Piscitelli. “Mas às vezes não é tão simples definir essa localidade”, apontou.
Em paralelo, o governo também deverá criar o Comitê Gestor do IBS, formado por representantes de Estados, municípios e Distrito Federal. O órgão terá, entre outras, a missão de distribuir a arrecadação do tributo entre os entes. “Não vejo como um órgão com superpoderes, mas, naturalmente, haverá disputa entre os municípios de quem será seu representante”, apontou Bichara.
Fonte: JOTA
PAULO ROBERTO NETTO – Repórter freelancer